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Guia para Gestores de Escolas

Especial Educação — Cuidar do aluno: até onde a escola pode ir?

Matéria publicada na edição 70 | Agosto 2011 – ver na edição online

A queixa é comum em escolas públicas e privadas: elas se sentem sobrecarregadas por terem que trabalhar cada vez mais o chamado conteúdo atitudinal nas crianças e adolescentes. Ressentem-se ainda pela falta de apoio de muitos familiares à disciplina mínima necessária para o convívio coletivo e a escolarização. Mas segundo especialistas, não há outro jeito senão “abraçar” o papel da formação emancipadora do caráter.

Um dos desabafos mais ouvidos dos gestores e educadores é o de que as escolas estão cada vez mais sozinhas no trabalho de formação do caráter em crianças, jovens e adolescentes, papel antes exercido predominantemente pelas famílias. Para piorar o quadro, eles dizem que muitos pais não dão respaldo às normas de comportamento e estudo das instituições, como horários e/ou materiais que devem ser levados às aulas. E que, paralelamente, há um aumento na intolerância entre os próprios estudantes. “Na verdade, tem ocorrido um jogo de empurra, um diálogo de surdos. Escolas e pais reclamam, uns e outros, que a tarefa de formação do caráter não é exclusivamente sua”, aponta a psicóloga Luciene Regina Tognetta, doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e professora do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação da Unicamp.

“A obrigação de educar moralmente é da escola, da família, dos professores e das próprias crianças, que começam a participar dessa regulação no convívio social”, defende Luciene. A psicóloga coordenou o projeto Reizinhos Felizes, desenvolvido nas redes municipais de ensino de Santa Bárbara D’Oeste e Valinhos, no Interior de São Paulo, com vistas a “reorganizar o ambiente escolar”, a trabalhar relações mais éticas entre alunos, professores e familiares.

Baseado em três livros de sua autoria (“O reizinho e ele mesmo”, “O menino e a mãe do menino” e “Era outra vez um reizinho … e seus vizinhos”, da coleção Falando de Sentimentos, da Editora Adonis), o projeto foi realizado em 2010 com 3.600 estudantes de ambos os municípios (Leia mais sobre o assunto na reportagem de Gestão, nas páginas 8 a 10 desta edição).

Segundo Luciene, se tradicionalmente compete à escola trabalhar a escolarização, de outro lado, “do ponto de vista das relações humanas e interpessoais, também cabe a ela outro conteúdo, legalmente atribuído pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que é a ética e os demais valores”. A psicóloga pondera, é claro, que é papel da família atuar sobre a “formação do caráter da criança, porém, com as mudanças históricas, ela não sabe mais como fazer isso”. Assim, é preciso que as escolas compreendam a necessidade de assumir esse compromisso em seu ambiente, proporcionando formação adequada ao professor. “Há necessidade de sensibilizá-lo, abrir um espaço para que ele fale de suas angústias, oferecer momentos de estudos e de aproximação com essa nova tendência, mostrar que a criança mudou e debater como fazer isso porque não é de uma hora para outra que se consegue”, observa.

NOVA FAMÍLIA, NOVOS PILARES EDUCACIONAIS Luciene destaca que “não existe mais a família ‘estendida’, ela está sozinha, a criança não convive com pais, tios, primos e avós, o que proporcionava toda uma orientação. Então a escola precisa dar conta de trazer essa família”, reitera. Isso signifi ca mostrar aos pais que existe “outra forma de educar que não a permissividade ou a violência”. Mas é preciso também estabelecer uma interlocução diferenciada com as crianças, para que elas conheçam os “princípios pelos quais as regras são feitas, possam se expressar e tomem consciência de suas ações”. “As escolas devem pensar como construir as regras com as crianças, sentindo suas necessidades através de avalições diárias ou assembleias escolares. Quando os alunos ajudam a construir uma regra, eles se responsabilizam por ela.”

Chefe do Departamento de Estudos e Normas Pedagógicas de Santa Bárbara D’Oeste, a educadora Ernestina Conceição Zanqueta Kinsui comenta que a responsabilidade das escolas aumentou pela própria expansão das redes de ensino no Brasil, o que gerou mais diversidade, um contato maior com as diferenças. Também as famílias mudaram bastante. “Com quatro a seis meses de idade as crianças já estão matriculadas no ambiente escolar e é nesse momento que surge o confl ito sobre a quem compete educá-las”, diz. “Acontece aí um abandono dos pais em função de seu desconhecimento de que é possível ser competente profi ssionalmente e também como educadores, pois nem que seja por apenas duas horas diárias, eles devem se mostrar efetivamente presentes enquanto referência de valores e de parâmetros comportamentais”. Desta forma, “aumentou muito o trabalho para as escolas, fi cou um jogo de empurra, em que não se conscientiza que esta é uma tarefa de todos, que somente pelo convívio na sociedade se poderão defi nir valores e normas de conduta, desenvolvendo um juízo moral”.

Segundo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o “aprender a viver com os outros” e o “aprender a ser” compõem dois dos quatro pilares fundamentais da educação na sociedade do século XXI, incorporados que foram ao “aprender a conhecer” e “aprender a fazer” em relatório coordenado por Jacques Delors e publicado em 1999.

COMPARTILHAMENTO DE RESPONSABILIDADES O recreio monitorado foi uma maneira interessante que o Centro Educacional Pioneiro encontrou para estimular o desenvolvimento da autonomia e trabalhar as regras de convívio e trocas de responsabilidades entre os alunos do 5º ao 9º ano do Ensino Fundamental. A escola, localizada na Vila Mariana, zona Sul de São Paulo, vem dando a eles a oportunidade de defi nirem, por meio de assembleias, as atividades esportivas e os jogos de tabuleiro que querem praticar em parte do recreio.

Eles distribuem isso ao longo da semana, defi nem ainda quais estudantes fi cam encarregados de guardar o material bem como a distribuição do espaço físico. Também são responsáveis pelo rateio fi nanceiro para a compra das bolas e demais equipamentos. Os professores apenas supervisionam e o resultado tem sido “uma integração muito forte entre eles”, avalia Vera Lúcia de Felice, diretora da Educação Infantil e Ensino Fundamental I da instituição.

A diretora destaca que o Pioneiro sempre teve um trabalho fortemente baseado no desenvolvimento dos valores. E que estes não mudaram, senão “a valorização que se dá aos valores”, porque “os pais saíram para trabalhar, o contato com a criança é muito menor e eles atribuem sim esse papel à escola, deixando muitas vezes a criança em período integral. Diante desta grande mudança social, entrou a necessidade de complementar ainda mais a formação do cidadão”, observa Vera Lúcia. E para que a parceria dê certo, a diretora diz que é indispensável haver sintonia entre escolas e familiares. Caso contrário, “se os pais não acreditarem na instituição, se perde a confi ança e o aluno percebe isso”, tornando- -se mais difícil o desenvolvimento das responsabilidades. O Centro Educacional promove diferentes ações junto às famílias ao longo do ano, “para que entendam esses valores que estão sendo trabalhados”. “Não é fácil, pois isso envolve limites, como desenvolver a responsabilidade de estudo via lições de casa, algo que a família deve supervisionar. Observar se fez todo dever, se interessa pelo que o fi lho está estudando, assistir o estudante dentro das tarefas que lhe são atribuídas”, ressalva a diretora.

No Colégio Pentágono, as professoras da Educação Infantil resolveram criar um grupo de estudos que se reúne toda segunda- feira, no período noturno, “para aprender a lidar com essas questões”. Segundo a diretora da Educação Infantil da Unidade Perdizes, Claudia Damiani Mileo, as escolas vêm percebendo que é preciso “abraçar algumas coisas que dizem respeito à formação” e passaram a “buscar a consultoria de especialistas para entender os confl itos e compreender como se trabalha esse conteúdo atitudinal”. Segundo ela, “não dá para a escola se eximir deste papel, pois é no seu espaço coletivo que os valores recebidos em casa são praticados. E hoje estamos mais preparados conceitualmente para fazer valer esses valores junto das famílias, trazendo-as para perto”, finaliza Claudia.

Saiba Mais:

CLAUDIA DAMIANI MILEO
[email protected]

ERNESTINA CONCEIÇÃO ZANQUETA KINSUI
[email protected]

LUCIENE TOGNETTA
[email protected]

VERA LÚCIA DE FELICE
[email protected] 

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