Matéria publicada na edição 05 | junho 2005 – ver na edição online
Em busca dos valores morais e éticos
Para o psicólogo Yves de La Taille, especialista em desenvolvimento moral, o mal-estar existencial, típico da sociedade moderna, se traduz em indisciplina e violência. Nesta entrevista, ele fala de como as escolas deixaram de lado temas como a moral e a ética, e porque é necessário retomá-los.
Para o mestre e doutor em Psicologia escolar pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Yves de La Taille, falta a prática da educação moral e ética nas escolas. Segundo o especialista, existe em nossa sociedade uma demanda para a dimensão moral, ou seja, a dos deveres, das obrigações, dos imperativos, do certo e do errado. “O que é proibido numa sociedade pode ser liberado noutra. Quem garante a moralidade é o indivíduo, portanto deve haver um sentimento de obrigatoriedade interno, não apenas o medo de uma punição”, avalia. Segundo Yves, as escolas não fazem educação moral mas abusam das regras. “A regra em si não diz nada. As escolas não conseguem obediência porque seus princípios não ficam claros”, diz.
Uma dimensão maior, que dá sentido à moral, é a ética. “A palavra ética é mais chique, enquanto moral lembra moralismo, conservadorismo. Na nossa sociedade, tem sido comum usar moral e ética como sinônimos”, aponta. “A pergunta da ética é que vida quero viver. É a busca da felicidade e como alcançá-la”, completa. Numa pesquisa recente feita pelo psicólogo com alunos do Ensino Médio, os adolescentes tinham que responder à seguinte questão: como eles se imaginavam daqui a 10 anos, enfim, qual era o seu projeto de vida para o futuro. “De cerca de 200 respostas, percebi que em 2/3 das redações o outro não aparecia. Ou seja, no projeto de vida desses jovens o outro não entra. E, se entrar, ele dá um jeito de passar por cima dele”, aponta. Para Yves, nossa sociedade não está feliz. Em sua opinião, o crescimento da indústria do divertimento é mais do que um sinal de que muitos buscam esquecer da vida, da falta de vontade de viver, do tédio. “Os jovens encontram um vazio no sentido da vida. Se perguntam para quê estudar, para quê a política. Não é a escola que dirá qual seu projeto de vida mas sem dúvida ela pode ajudar esse jovem a se situar”, conclui.
Yves de La Taille é professor de Psicologia do Desenvolvimento Moral na USP, co-autor dos livros Piaget, Vygotsky, Wallon: Teorias Psicogenéticas em Discussão e Indisciplina na Escola (Summus Editorial) e Cinco Estudos de Educação Moral (Casa do Psicólogo) e autor, entre outros, de Limites: Três Dimensões Educacionais (Editora Ática) e Vergonha, a Ferida Moral (Editora Vozes). No 12º Congresso Internacional de Educação/Educador, realizado em maio, em São Paulo, Yves falou a educadores. O assunto foi “Formação de valores: uma atribuição da escola?”. Leia a seguir a entrevista que Yves de La Taille deu a Revista Direcional Escolas sobre o seu tema de estudo.
DIRECIONAL ESCOLAS – Moral e ética são conceitos diferentes?
YVES DE LA TAILLE – No nosso mundo ocidental, hoje, moral e ética costumam ser empregados como sinônimos. Por exemplo, fala-se em códigos de ética, como códigos normativos de cada profissão, ou em comitê de ética na pesquisa, como as leis que os pesquisadores devem seguir. Porém, um domínio é o domínio da norma, da lei, do dever. Outro domínio é o do sentido da vida, da felicidade, da vida boa. A questão da felicidade, do sentido da vida, não tem sido assimilada. Quase sempre quando se fala em norma, não se fala do sentido da vida boa, e quando se fala disso não se fala na norma. Existe uma esquizofrenia, uma separação. Do ponto de vista psicológico, a questão da norma, como devo agir, e a questão da felicidade, como quero viver, estão relacionadas.
A palavra ética tem um sentido mais corrente, “pega” melhor do que a palavra moral dentro da educação. Moral tem um sentido normativo. Da minha experiência em conferências para educadores, onde eu falo do ponto de vista da psicologia, vejo que a demanda do público é por normas, notadamente baseada na queixa: meu aluno não me respeita, meu aluno não se comporta. O professor não vê uma norma sendo respeitada por parte dos seus alunos.
– Essa situação exige uma mudança da escola ou da família?
Uma alteração dessa situação depende de muitas coisas. Em primeiro lugar, se o aluno não respeita normas, provavelmente essas normas não fazem sentido para ele. Para que elas façam sentido, elas têm que estar relacionadas a um projeto de vida. Se temos uma pessoa violenta e tentamos resolver o problema falando em paz, continuamos agindo no sentido normativo. A melhor maneira para fazer com que uma pessoa deixe de ser violenta é entender o significado que a violência tem para ela, e não desfiando um discurso.
Se a norma não faz sentido, ela não é legitimada. As pessoas não têm nem como criticar a norma, apenas não se sentem intimamente motivadas a segui-la. Outra possibilidade é que ela não faz sentido porque se opõe a um outro sentido. É a diferença entre um aluno simplesmente indisciplinado e um aluno rebelde. A norma para alguém pode não somente não fazer sentido como contrariar o sentido que ela quer dar. Há duas possibilidades, portanto, de não fazer sentido: uma não faz sentido, cai no vazio, outra é contraditória com o que a pessoa acha.
Muitas vezes as normas escolares podem não fazer sentido simplesmente. O erro da escola é colocar apenas a norma e não o princípio que está atrás da norma. Por exemplo, usar uniforme. Qual o sentido dessa regra? Pode ser evitar que alunos mais ricos façam desfile de moda e deixem incomodados os alunos mais pobres. Colocando uniforme, há uma padronização, evitando situações humilhantes. É uma boa razão numa escola que tenha esse perfil. Numa escola pública, outra razão é por uma questão de segurança, para identificar os alunos no percurso que fazem até o colégio através do uniforme. Essas crianças vão a pé para escola. Não faz o mesmo sentido numa escola de classe média, onde nem sempre os alunos vão a pé para a escola. Outro exemplo: não fumar. Um argumento é porque faz mal, mas esse é um argumento autocentrado, é bom para a pessoa. Outro argumento moral é que incomoda os outros. Tem que haver uma rede de sentidos para que as normas tenham sucesso.
– Nas escolas, existe essa transparência dos princípios?
Na maioria das escolas, os professores não têm clareza dos princípios. Cito um exemplo de uma escola que me pediu para auxiliar no seu código de ética, que só tinha normas. 4/5 das normas eram destinadas ao comportamento dos alunos e apenas 1/5 ao comportamento dos professores. Eram pessoas extremamente sinceras, com vontade de acertar. Foi uma divisão feita inconscientemente. Proibiram o namoro dentro da escola, mas nem sabiam explicar exatamente o porquê dessa norma. O discurso da escola não estava pronto e os alunos começaram a não gostar dessa norma. Faltou, a meu ver, o princípio. O princípio de uma decisão como essa é o que é vida pública e o que é vida privada. Outro exemplo é o do uso do celular. Na escola, estou num lugar onde as coisas são públicas. Como uma relação de namoro está num nível privado, não faz sentido na escola. O celular está invadindo o espaço público pelo espaço privado. Isso tem que ser revisto. Não o celular ou o beijo em si. Deve ser discutido o princípio. Com os meus alunos da USP, onde eu leciono Psicologia Moral, eu percebo duas coisas: o nível de reflexão sobre o tema é muito pequeno, simplesmente porque nunca um professor colocou isso como tema em sala de aula. Por outro lado, se você encaminha para a questão do princípio, rapidamente eles entendem e concordam. Costumo brincar com eles sobre uma norma de dormir durante a aula. Pergunto se pode dormir durante a aula. Eles levam para o lado técnico: não pode dormir porque perde aula, perde matéria. Por outro lado, dormir enquanto uma pessoa fala é uma falta de respeito, há uma dimensão moral no dormir durante a aula. Se fosse um aluno dando um seminário a situação de falta de respeito seria a mesma.
– As escolas têm receio de serem classificadas como autoritárias e por isso deixam de lado a discussão sobre a moral?
O Brasil tem uma história bem específica a esse respeito. A famosa matéria de Educação Moral e Cívica, imposta pela ditadura militar, foi uma matéria mal vista, inclusive se associando à moral e ao civismo um valor negativo, o que é uma pena, porque moral e civismo são coisas importantes. Isso aconteceu nos anos 60/70, quando a juventude se rebelou contra determinadas normas. Sem dúvida nenhuma há um medo de voltar a Educação Moral e Cívica, medo de ser autoritário, mas que não está dando certo. Esse medo criou o medo de entrar na sala de aula e de enfrentar os alunos. Jogaram fora a matéria que era muito ruim, mas hoje todo mundo se queixa de incivilidade. Pergunto às escolas: tem educação cívica? Se queixam de desrespeito. Tem educação moral? Não. Então não se queixem. O grande discurso costuma ser que a culpa é da família. É claro que a família tem muita responsabilidade, mas não adianta culpar a família. Isso é muito fácil.
Na escola particular, há algo ainda mais grave. O aluno se assemelha a um cliente. Cada vez mais a escola se assemelha até a uma espécie de shopping, tem loja, cantina. A escola é vendedora de um produto que não é dela, ela vende um patrimônio cultural. A escola tem muito medo de enfrentar os pais e de perder aluno.
– Como o senhor avalia a fobia de certos professores em entrar na sala de aula?
Esse é um fenômeno mundial. Na França, por exemplo, tem professor que desiste de dar aula. Não está fácil enfrentar, inclusive no terceiro grau. Há o medo de entrar em sala de aula, de não ser respeitado. E nada pior do que não ser respeitado. O professor se sente humilhado. Na minha experiência com os alunos vejo que não há reflexão a respeito disso. Muitos deles vão assistir a uma aula como um direito deles, que é, mas se a aula é boa eles assistem, se é chata eles vão embora. Se o aluno está com fome, ele come no meio da aula, se ele está com calor vai embora, como se o professor fosse alguém que ele vê pela televisão. Enquanto pessoa parece que o professor nem está lá. Tenho chamado isso de falta de saliência, você não vê o outro enquanto outro. É uma relação como ele tem com a TV, e é a relação que as pessoas tem hoje em dia. É como o celular: você está conversando com alguém, toca o celular. Você não dá prioridade a nada. Temos que ter um cuidado: às vezes os próprios professores agem assim e são culpados disso. O celular dele toca no meio da aula, ele pára a aula e o aluno também se sente como se estivesse diante da TV.
– O respeito seria o valor que está por trás de tudo isso?
O respeito é o valor moral básico. O outro tem uma dignidade que eu devo respeitar. Se o outro não é visto como uma pessoa digna de respeito na sua individualidade, as relações ficam prejudicadas. No nosso mundo, hoje, não existe mais reparar na presença do outro. Sobretudo nas grandes cidades, há tanta gente, tantos outros. Cito o exemplo da USP, que eu conheço bem. Na década de 70, a USP não era apenas um lugar de aprender, era um lugar de convivência. Os alunos vinham aqui para estudar, para fazer música, para apresentar peças de teatro, para assembléias do movimento estudantil, era um lugar de socialização. Isso facilitava a visibilidade. O professor não era só o professor. Hoje em dia os alunos vêm aqui para ter aula e vão embora. Eles acabam dispersos no lugar, o que acaba sendo um fator complicador para o que eu chamo de falta de saliência do outro.
– As escolas de Ensino Fundamental e Médio têm procurado fazer com que o aluno fique mais tempo na escola, para fazer dela esse local de convivência. O que o senhor acha dessa iniciativa?
Isso é bom, mas nasce de uma coisa errada. Os europeus até brincam dizendo que o povo brasileiro deve ser muito inteligente, porque em um período só de aulas o brasileiro consegue aprender o mesmo que os suecos, franceses, alemães, italianos precisam de dois períodos para aprender. No Brasil existe um pecado, portanto, que é o da escola não ser oficialmente, legalmente, obrigatoriamente, em período integral. Então a escola cobra mais para os seus alunos ficarem os dois períodos. Isso gera uma série de problemas. Primeiro, o aluno chega muito cedo, às 7:30h. Em geral as crianças não dormem mais tão cedo, em função dos pais chegarem tarde em casa. Há diversos estudos que mostram que o horário de estuda influi no nível de assimilação. Por outro lado, nem sempre a escola particular é escolhida em função da sua localidade. Muitos alunos não freqüentam a escola do seu bairro, então rodam muito até chegar à escola.