“É preciso priorizar, acima de tudo, ações que permitam uma melhoria no ambiente relacional. Em ambientes de boa qualidade, muito do que é visto como bullying pode ter sua percepção alterada. É preciso um trabalho constante para que professores e estudantes se conheçam para além da ‘aula expositiva’”, diz Luca Rischbieter, consultor pedagógico da Unidade de Tecnologias Educativas da Positivo Informática.
Por Rafael Pinheiro
O cyberbullying é uma derivação da prática do bullying, quando este tipo de violência praticada contra alguém se passa através da internet, redes sociais, celular, mensagens ou outros meios de comunicação virtual. Praticar cyberbullying significa usar o espaço virtual para hostilizar uma pessoa, seja um professor, colega da escola, ou mesmo desconhecidos, difamando, insultando ou atacando.
“O cyberbullying normalmente se manifesta em nove formas mais comuns: injúria, difamação, ofensa, falsa identidade, calúnia, ameaça, racismo, constrangimento e até incitação ao suicídio. E pode ser tão simples (simples na ação, mas complexo no seu efeito) como postar fotos tendenciosas, declarações falsas, comentários com a intenção de humilhar ou ridicularizar uma pessoa, mencionar adjetivos pejorativos, insistir em enviar e-mail para alguém que não quer mais contato, entre muitos outros”, afirma Eduardo Guedes, pesquisador do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fundador do Instituto Delete, especializado em promover orientação e educação para o uso consciente da tecnologia nas empresas e sociedade.
Com o advento tecnológico, a popularização de mídias sociais e o acesso às diversas ferramentas facilitadoras e aos aplicativos móveis, a presente era da massificação e cultura digital ganha uma notoriedade peculiar em cada indivíduo, gerando uma sensação ímpar de liberdade para agradar ou insultar qualquer usuário no ambiente virtual.
Uma pesquisa realizada pela Mobile Report, da Nielsen IBOPE, no mês de maio passado, indica que as redes sociais predominam entre os aplicativos mais populares no Brasil. Entre os dez aplicativos mais usados pelos 68,4 milhões de brasileiros conectados por smartphones, quatro são aplicativos de redes sociais ou de troca de mensagens. Dois são para acesso a e-mail.
A pesquisa também questionou os usuários de smartphones sobre a posse e a utilização de tablets. Entre as pessoas com smartphones conectados, 38,8 milhões têm tablet em casa. Perguntados sobre quem é o maior usuário do tablet em seu domicílio, 28% responderam que são as crianças, divididos igualmente entre os meninos e as meninas.
Segundo o pesquisador Eduardo Guedes, é preciso trabalhar em dois eixos para extinguir o cyberbullying: na prevenção e na punição. Atualmente, existem algumas leis que surgiram a partir de episódios do passado e que, de alguma forma, promoveram o debate e a evolução dos aspectos legais.
“Entretanto, tão importante quanto a punição, é o eixo da prevenção, que é mais lento porém mais eficiente a longo prazo. É necessário ampliar a informação não somente dos aspectos legais, mas essencialmente de regras de boas maneiras para utilizar as novas mídias digitais. O conhecimento e educação são as ferramentas mais importantes neste processo”, comenta Eduardo.
Exercitar o olhar igualitário, fortalecer a identidade cultural de cada aluno e reforçar práticas que possam integrar as diferenças comprovam resultados positivos, principalmente no desempenho e crescimento no âmbito escolar, além de erradicar práticas de intolerância à diversidade, bullying, cyberbullying, racismo, construções de gênero e toda e qualquer discriminação que possa disseminar nos corredores das instituições escolares – e, posteriormente, na fase adulta.
ENTREVISTA
Para aprofundar no tema, entrevistamos Luca Rischbieter, formado em Geografia pela Universidade Federal do Paraná, com Licenciatura e Mestrado em Educação pela Universidade Paris V. Atualmente, Luca trabalha como consultor pedagógico da Unidade de Tecnologias Educativas da Positivo Informática.
Confira abaixo a entrevista completa:
Revista Direcional Escolas: Como podemos definir o cyberbullying?
Luca Rischbieter: É a versão virtual do bullying. O termo é usado para falar sobre diversas formas de agressão e de perseguição que podem ser feitas, individualmente ou em grupo, contra uma pessoa, ou grupo. Na verdade, eu não gosto muito deste termo, porque ele vem sendo usado cada vez mais, e aplicado para definir um número cada vez maior de situações. Como sabemos, quando um conceito se dispõe a explicar tudo, na verdade não explica nada. Mas, é importante estarmos todos (as) conscientes da presença de formas de violência e de perseguição que se exercem através de meios como as redes sociais. Dois exemplos disso podem ser o do ex- namorado que divulga imagens da ex-namorada, ou da criança que é vítima de “gozações” coletivas feitas em uma rede social por vários colegas de sua turma, na escola.
Revista Direcional Escolas: Podemos dizer que as práticas de bullying na internet são recentes e têm aumentado rapidamente no Brasil?
Luca Rischbieter: Sim, podemos, infelizmente. E isso se deve a uma conjugação de três fatores. Em primeiro lugar, evidentemente, está a democratização espetacular do acesso aos tablets, aos celulares e à Internet Também a forma como a população brasileira gosta do Facebook, Whatsapp e outras redes sociais e apropria-se delas com voracidade. O segundo fator é menos evidente, mas aqui está o X da questão: comportamentos que chamamos de bullying têm muito mais chances de acontecer em ambientes em que as relações não são boas, ou são pobres. Quando estamos entre amigos de verdade, ou em boas famílias, por exemplo, fazer piadas e “tirar sarro” são momentos que não precisamos temer e encontram seus limites no conhecimento e respeito mútuos. A tendência do crescimento de nossas sociedades vai no sentido de criar grandes cidades habitadas por pessoas que se conhecem pouco, pelas famosas “multidões solitárias”. Essa é uma tendência sociológica importante. Nas redes sociais, temos interações entre pessoas que se conhecem pouco ou nunca se viram pessoalmente e, nesses contextos, as chances para mal entendidos e agressões aumentam muito.
O terceiro elemento é decisivo. Nós vamos encontrar em nossas escolas e em nossas cidades. Nas escolas, onde poderíamos promover a socialização e boas relações, insistimos de forma anacrônica em priorizar a “transmissão de conteúdos” e as aulas expositivas, com uma população de crianças e jovens mergulhada nas tecnologias digitais e que aceita cada vez pior as exigências de passividade desta pedagogia ultrapassada e onipresente. E nossas cidades, que poderiam estar repletas de áreas boas para o encontro entre pessoas, estão entregues aos edifícios, aos carros e asfalto, gerando um grande empobrecimento das relações sociais. Em um contexto de alta incorporação de tecnologia e de falta de solidariedade nas comunidades, a “velha” escola e a ausência de um planejamento para a construção de boas cidades tornam inevitável a degradação das relações sociais e o aumento de comportamentos que se tornam agressivos. Os casos de cyberbullying, claro, entram nessa lista.
Revista Direcional Escolas: Quais são as medidas necessárias para erradicar o cyberbullying?
Luca Rischbieter: É preciso priorizar, acima de tudo, ações que permitam uma melhoria no ambiente relacional. Em ambientes de boa qualidade, muito do que é visto como bullying pode ter sua percepção alterada. É preciso um trabalho constante para que professores e estudantes se conheçam para além da “aula expositiva”. Mudar a pedagogia, para incorporar tecnologia de forma inteligente e para oferecer situações – como projetos, pesquisas, debates – em que todos terão mais espaço para a expressão, para interagir, para trocar opiniões, etc. É preciso, cada vez mais, entender que a escola, hoje, não poderia mais ser um espaço em que vamos para dar e ter “aulas” expositivas. A força deste paradigma completamente ultrapassado deve ser contestada, para construirmos escolas que tenham sentido para o maior número de estudantes, em atividades em que eles (as) colaboram, pesquisam, produzem e apresentam materiais usando os imensos recursos das novas tecnologias. Isso é o que deveríamos fazer, se não fossemos presas de um modelo ultrapassado de escola.
Agora, diante uma situação em que aconteceu uma agressão virtual, as coisas mudam, e é preciso ter em mente que ninguém gosta de ser definido como “vítima” de bullying e que, o que é muito importante, o agressor também odeia ser visto socialmente como alguém que praticou bullying. Cada situação é única e exige bom senso e tentativas de entender e de esclarecer os dois lados, procurando evitar as pesadas etiquetas de “vítima” e de “agressor”.
Revista Direcional Escolas: Como é possível se proteger dessas práticas na internet? Existe alguma lei específica para essas práticas?
Luca Rischbieter: Não sou especialista em leis, mas elas existem. O que nós vemos é que as famílias, mais do que as escolas, começam a educar para esses novos perigos, a construir regras e a impô-las a seus filhos. Monitorar, controlar, dialogar, orientar (por exemplo, para que a criança “salve” telas em que aparecem mensagem de desconhecidos, ou que ela considere agressivas) são recursos que emergem quase que normalmente nas boa famílias que educam suas crianças na era digital.
Revista Direcional Escolas: Você acredita que a direção escolar deve interferir em casos de cyberbullying ou realizar atividades/programas de conscientização?
Luca Rischbieter: Obviamente que sim. Muitas escolas ainda lutam contra qualquer forma de uso de tecnologia associada aos processos de ensinar e de aprender, mas não podem evitar, por exemplo, o uso das redes sociais e de programas de trocas e mensagens pelos seus alunos. Essas escolas acabam sendo pegas de surpresa quando graves incidentes envolvendo cyberbullying acontecem. Uma observação mais atenta do dia a dia da escola e a abertura de canais de diálogo com cada estudante – especialmente com aqueles(as) que parecem mais isolados(as) – podem nos permitir detectar e combater processos no mundo virtual que surgem de situações que acontecem, em nossos pátios e em nossas salas.
Revista Direcional Escolas: O bullying virtual pode ser mais cruel e ofensivo do que o bullying “tradicional”?
Luca Rischbieter: Infelizmente, parece que essa forma de agressão pode ter resultados terríveis, ao massacrar a autoestima e gerar a percepção – por parte de uma vítima de violência – de que ela “não vale nada”. Em termos psicanalíticos, podemos pensar que – ao contrário do que ocorre em uma situação de bullying, quando estamos diante de quem nos agride, e podemos conferir o “tom” que utilizado. Quando a agressão, a ofensa, a piadinha aparecem em nossa tela de celular, ou de computador, somos deixados sozinhos com nossos “fantasmas” de insuficiência e de rejeição. Esse processo pode se exacerbar a cada nova mensagem ou comentário virtual. Nos casos mais graves, a pessoa que se sente agredida ou ridicularizada pode desenvolver processos endógenos de autoagressão. O que pode leva-la à depressão e ao suicídio.
Revista Direcional Escolas: Quais são os efeitos que certas agressões podem acarretar na vida escolar e social de uma criança, além do aspecto psicológico?
Luca Rischbieter: Perceba que, quando uma criança é avaliada com a nota “zero”, isso pode ser vivenciado por ela como uma grande agressão. Uso o exemplo para ilustrar que há inúmeras formas de se tirar a autoestima de quem não se adapta à escola. A própria instituição, ao insistir em caminhos ultrapassados, torna-se agente de grandes agressões. Os efeitos são sempre o retraimento, a frustração, a perda da auto estima e o empobrecimento dos relacionamentos. São efeitos terríveis sobre o desenvolvimento pessoal e, como já dissemos, é por isso que precisamos urgentemente de escolas que “funcionem” no dia a dia abrindo espaço para as interações e para a aceitação das diferenças, para a expressão de conflitos, para dar voz aos que se sentem ofendidos e aos que ofendem.
Revista Direcional Escolas: Você acredita que há uma necessidade de educar crianças e jovens para a utilização da internet de forma benéfica e produtiva?
Luca Rischbieter: Vou lhe dar uma resposta que pode ser interpretada, conforme o momento e a sensibilidade de quem a recebe, como uma forma bem leve de bullying: “não apenas as crianças, né?”. E aí eu ponho um sorriso, para deixar clara minha “metalinguagem”, aqui. J
Todos (as) nós precisamos conhecer os riscos da agressão virtual. Já tivemos pessoas inocentes sendo vítimas de linchamento, a partir de falsas informações divulgadas nas redes sociais. Cada um (a) de nós precisa aprender a individualizar-se, a não entrar nas diferentes ondas de perseguição que periodicamente inundam o mundo virtual.
Utilizar e interagir no mundo virtual, como você diz, “de forma benéfica e produtiva”, exige uma atitude consciente, aprender a resistir aos impulsos emocionais capazes de transformar qualquer um(a) de nós em uma “Maria vai com as outras” que se junta, irresponsavelmente, a um grupo que “tira onda”, “faz piada” ou divulga imagens e informações que humilham alguém. A discussão sobre como usamos a internet e como nos relacionamos nela, o debate sobre caso graves, a abertura de canais para denúncia e discussão de bullying e cyberbullying, a conversa com quem pesquisa e reflete sobre o tema são alguns caminhos para que todos nós cheguemos a formas de uso da internet em que a violência e a polarização sejam cada vez menos presentes. Certamente, cada sala de aula deste país é um excelente espaço para começar a fazer esse trabalho de debate, de prevenção e de conscientização. E, talvez, seja capaz de nos dar uma geração que saiba usar com mais sabedoria as incríveis possibilidades da internet, evitando os seus riscos e minimizando as situações de conflito, de agressão e de perseguição ao que julgamos “diferente”.