Matéria publicada na edição 73 | Novembro 2011- ver na edição online
A Revista Direcional Escolas consultou especialistas, escolas e o Instituto Rodrigo Mendes para que relatassem um pouco do que têm observado ou realizado como experiência de inclusão na educação básica brasileira. É um desafio que mexe com a própria estrutura curricular e faz repensar a educação em seu conjunto.
Por Rosali Figueiredo
Quinze anos após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), prevendo a inclusão de crianças e adolescentes com necessidades especiais no ensino regular, a situação das escolas permanece “muito controversa e discutida”, aponta Márcia Icléa Bagnatori, pedagoga e especialista em educação de portadores de deficiência mental. Ex-coordenadora da Associação para o Desenvolvimento Integral do Down (Adid), mestre em educação e autora de projetos pedagógicos para escolas inclusivas, Márcia observa que as instituições – “mais as privadas que as públicas” – estão “em busca de conhecimento e soluções para o dia a dia”, mas ainda o fazem para “resolver o seu problema” e não para realizar “o processo da inclusão como um todo”.
Nesse período, ou seja, desde 1996, especialistas e educadores mudaram um pouco a própria abordagem sobre a inclusão, gradativamente extrapolando-a da situação de necessidade educacional especial, e ampliando-a para o campo das diferenças, da heterogeneidade. Também consolidaram a perspectiva de que não há uma receita pronta, senão o investimento em uma construção pedagógica individualizada e diária dentro de um ambiente coletivo, o qual demanda, sobretudo, apoio e estrutura profissional. E perceberam que os pilares centrais da educação inclusiva se assentam na flexibilização do currículo, na formação dos educadores e na parceria com os pais. Por fim, começaram a questionar se o próprio currículo tradicional e competitivo já não seria excludente, por natureza.
REVENDO PRESSUPOSTOS
O Brasil está “engatinhando rumo a um projeto educativo inclusivo”, observa a psicopedagoga Jane Patrícia Haddad. Durante conferência realizada no Congresso do Saber 2011, no último mês de setembro, em São Paulo, Jane defendeu ampla revisão do processo de inclusão pelas escolas. “Há uma tentativa bem intencionada de fazer a inclusão, um bom começo, mas só boa intenção não resolve o problema”. Ou seja, não evita os riscos de uma “pseudo-inclusão” ou mesmo de “segregação”, diz.
“Nossas escolas estão sustentadas em tradições homogêneas, os professores ainda fundamentam suas teorias e práticas em modelos fechados, em que só entram alunos bons e produtivos. Trabalhar a diversidade e a diferença é um longo caminho a ser percorrido”, observa Jane. Como assegurar a inclusão se o próprio currículo ainda é “classificatório”, “excludente” e estimula a “competição pela competição?”, questiona a psicopedagoga. Segundo ela, o ponto de partida é “repensar o currículo, levando em conta que crianças e jovens ‘diferentes’ apreendem de formas diferentes, usam habilidades que nem sempre nós educadores conhecemos”. “Começaria pensando um currículo que contemple os sentidos, o lúdico, a sensibilidade, o estético, alicerçado na forma de olhar e reconhecer a importância da diversidade e que favoreça um debate entre todos os envolvidos na comunidade educativa.”
Para a psicopedagoga Edimara de Lima, diretora pedagógica da Escola Prima Montessori, de São Paulo, as escolas que atuam sem uma expectativa de desempenho padrão por parte dos alunos “construíram estruturas mais flexíveis e podem dar melhor atendimento às diferentes modalidades de aprendizagem em seus diferentes ritmos”. Isso não significa, ressalva a diretora, que se abra mão da excelência acadêmica. São instituições que lidam com o conjunto das diferenças individuais normais no timing da aprendizagem, além de situações como superdotação, hiperatividade, déficit de atenção e variados níveis de comprometimento motor e/ou intelectual.
Nesse sentido, “não há obstáculos advindos da legislação, a heterogeneidade é muito rica e desafiante e não é empecilho ao desenvolvimento de projetos pedagógicos bem estruturados”, observa Edimara. “A diversidade é mal vista por projetos educacionais que partem do princípio de homogeneidade”, que considerem que “todas as crianças de seis anos devem ser alfabetizadas no primeiro semestre letivo do 1º ano do Ensino Fundamental. Ora, existem crianças que podem ser alfabetizadas aos quatro ou cinco anos, assim como outras que só atingirão este patamar aos oito ou nove. Agora se eu parto do princípio da singularidade do ser humano, a diversidade será bem vinda, pois enriquecerá as relações sociais e o aprendizado”, analisa a diretora.
OLHARES SOBRE A PRÁTICA
A necessidade de se investir na formação dos professores também é peça-chave da inclusão. “Parâmetros são necessários e não engessam o trabalho do professor”, destaca Edimara. A diretora observa que os cursos de graduação ignoram, por exemplo, as “necessidades educativas especiais”. “Não há informação sobre como fazer o encaminhamento clínico de alunos, o que observar”, nem “como analisar o observado para se chegar a conclusões eficientes”. O que não representa desempenhar um papel clínico, senão ter instrumentos para identificar a origem das dificuldades. Nesse aspecto, Edimara defende que cabe ao poder público oferecer centros de apoio à escola e à família. “Exames simples como a audiometria ou testes de acuidade visual não são obrigatórios na maioria das escolas”, mas ajudariam a eliminar “grande número de dificuldades de aprendizagem confundidas com necessidades educacionais especiais”.
Entretanto, Edimara deixa um alerta: “A legislação fala de inclusão irrestrita, mas a prática nos faz ver que esta posição é utópica; tudo e todos possuem um limite. Adolescentes bipolares que não estejam acompanhados clinicamente podem em momento de raiva descontrolada machucar um colega ou um professor”, observa, para em seguida, arrematar: “Não acredito em regra única. Escolas possuem estruturas físicas e humanas diferenciadas, e uma pode dar acolhimento ao que outra não consegue. Competências são diferentes por inúmeras razões e a discriminação não está necessariamente entre elas; admitir seu despreparo frente a uma necessidade específica pode ser um ato de amor e coragem. Agora, estar despreparado para qualquer necessidade especial é desrespeito à lei e principalmente à essência da condição de educador.”
A RELAÇÃO COM OS FAMILIARES
A parceria com os pais representa o terceiro pilar do processo inclusivo e, sobretudo, demanda transparência, conforme anota a especialista Márcia Icléa. “Com a lei da inclusão, muitos pais colocam seus filhos na escola como se ela tivesse o poder de sanar todas as dificuldades que a criança apresenta. Porém, quase ninguém diz a estes pais a realidade de tudo o que o filho vai necessitar para que a aprendizagem se concretize. E mais, não informam que esta criança talvez não consiga aprender tudo, porém, com a parceria família e escola, fazendo um trabalho bem feito e dedicado de ambas as partes, a criança poderá atingir seu potencial máximo de desenvolvimento”, analisa a especialista. Segundo Márcia, é preciso “ser transparente quanto às possibilidades do aluno, ao trabalho que será desenvolvido, ao interesse da escola pela aprendizagem, pois, somente assim, os pais se sentirão seguros e confiarão na escola”.
COMO ELAS FAZEM
Uma das mais tradicionais instituições de ensino de São Paulo, o Colégio Rio Branco formará neste ano sua primeira turma de Ensino Médio com alunos surdos na unidade da Granja Viana. Vinculado à Fundação de Rotarianos, o Rio Branco implantou há três décadas a Escola para Crianças Surdas, que atende desde bebês a alunos que completam o Ensino Fundamental I, em salas de aula bilíngues (ministradas em Libras e na versão escrita da Língua Portuguesa). A partir do 6º ano, os estudantes são inseridos nas classes dos alunos ouvintes e acompanhados por um tradutor intérprete de Libras.
Entretanto, esse não é o único trabalho de inclusão do Rio Branco, que desenvolveu uma estratégia própria para atuar em face de distúrbios como déficit de atenção, dislexia e Síndrome de Asperger, entre outros. “Aprender a trabalhar com dificuldades específicas tem sido um desafio para as instituições de ensino como um todo”, observam as principais responsáveis pelo processo na instituição, a diretora geral Esther Carvalho, as orientadoras dos Núcleos de Apoio, Carla Marquart e Cinthya Nagasse, a supervisora pedagógica na unidade da Granja Viana, Carolina Sperandio, e a coordenadora de inclusão dos alunos surdos, Mirian Caxilé. “Com o passar do tempo temos vencido desafios com o auxílio das equipes envolvidas que se debruçam na busca de soluções para os problemas que surgem e discutem estratégias para aprimorar cada vez mais o trabalho”, dizem.
Pois é na prática diária que o projeto pedagógico da inclusão acaba sendo formatado pelas instituições de ensino, independente de qual seja o seu perfil. O Colégio Viver, por exemplo, que optou por uma estrutura curricular mais flexível em sua proposta geral de ensino, parte do pressuposto que a escola já representa por si um “exercício dessa convivência com a diferença”, “compreendendo que a diversidade é uma característica fundamental do ser humano e deve ser respeitada”, segundo a coordenadora, Anna Maria Ferreira. A partir daí, sua própria organização de ensino, focada nas necessidades e demandas do aluno, no exercício de sua autonomia e individualidade dentro de um coletivo, abre possibilidades de se trabalhar também com crianças com dificuldades de aprendizagem ou que necessitem de cuidados especiais.
Também a Escola Prima Montessori possui uma estrutura pedagógica que facilita os processos de inclusão. “Não temos seriação, o andamento do currículo é feito em pequenos grupos ou até individualmente quando necessário, com isso as diferenças são a regra, não a exceção. Por exemplo, um garoto de 9º ano que tenha altas habilidades em Matemática não necessita da quantidade de exercícios de sistematização que outras crianças precisam. Então pensamos num currículo de Matemática desafiante para esse aluno”, relata a diretora pedagógica, Edimara de Lima. Na Prima Montessori, que possui 200 alunos no Ensino Fundamental I e II, entre os quais 30 com necessidades diferenciadas, os agrupamentos são feitos a cada dois anos, os quais, por sua vez, são subdivididos conforme as afinidades (como nas aulas de Artes e Música), porte físico (Educação Física) ou competências (Inglês). Entretanto, segundo Edimara, há situações que demandam trabalho de uma escola especializada. Ela reconhece, porém, que existe uma linha forte de pensamento “que não admite o trabalho da escola especializada, nem que uma escola regular se diga impossibilitada de atender a algum tipo de demanda”. (R.F.)
FILOSOFIA INCLUSIVA, UM PONTO DE PARTIDA
O Instituto Rodrigo Mendes acaba de lançar o Projeto Diversa, um portal na internet – o www.diversa.org.br – que pretende oferecer às escolas artigos de especialistas e relatos de boas práticas de inclusão. Durante o ano de 2010, quatro escolas brasileiras foram observadas pelo Instituto, que agora descreve esta experiência na web. Uma quinta escola está sendo acompanhada no momento, afirma o coordenador do projeto, o psicólogo Augusto Valery. O Instituto Rodrigo Mendes desenvolve outros dois trabalhos de suporte em inclusão, o Programa Singular (de educação através da arte) e o Programa Plural (de formação de educadores).
Segundo Augusto Galery, há dois conceitos que ainda devem ser incorporados pelas escolas e a sociedade: o de que cada aluno aprende de um jeito, portanto, quanto mais recursos se disponibilizar em sala de aula, mais alunos irão se beneficiar; e o de que, portanto, o convívio com a diferença não fragiliza o ensino, pelo contrário, o fortalece. Mas a inclusão somente acontece “quando consigo colocar a mentalidade inclusiva na equipe pedagógica”. Neste caso, “o que diferencia um aluno do outro acaba se tornando um detalhe, pois a escola com esse perfil irá buscar os recursos necessários”, desenvolvendo suas próprias ferramentas ou buscando apoio tecnológico ou especializado, diz. O coordenador afirma ainda que parcerias com instituições especializadas surgem como grande facilitador, mas que o fundamental é justamente trabalhar a filosofia inclusiva, entendendo que a partir do contato com o aluno torna-se possível “descobrir o que ele precisa e ir atrás do recurso”. (R.F.)
Saiba mais
Anna Maria Ferreira
coordenacao@colegioviver.com.br
Augusto Galery
www.diversa.org.br
augusto@institutorodrigomendes.org.br
comunicação@institutorodrigomendes.org.br
Edimara de Lima
edimara@primamontessori.com.br
Esther Carvalho
assessoriaimprensa@frsp.org
Jane Patricia Haddad
janepati@terra.com.br
Márcia Iclea Bagnatori
miclea@ig.com.br