Matéria publicada na edição 71 | Setembro 2011 – ver na edição online
A facilidade de acesso às informações sobre sexo, principalmente na internet e tevê, não tem sido capaz de auxiliar nas dúvidas e angústias entre os adolescentes. Pelo contrário, elas mais estimulam que orientam. Falta conteúdo e reflexão, apontam especialistas, que defendem trabalho sistemático de orientação sexual nas escolas.
Por Rosali Figueiredo
O XV Congresso e Feira de Educação Saber 2011, um dos maiores encontros anuais do segmento em São Paulo, programou para a edição de princípios de setembro uma oficina de “conversa sobre sexualidade na família e na escola”, organizado por Maria Helena Vilela e Luiz Amadeu Bragante, do Instituto Kaplan, um dos pioneiros do trabalho na área. Educadora sexual, fundadora e diretora do Kaplan, Maria Helena observa que a internet “abriu um campo fantástico de informações ao jovem”. Mas é preciso que “as referências venham pelos próprios pais e adultos com os quais os adolescentes convivem”, por isso o prenome da oficina traz a frase “do site para o chega-te”, procurando chamar atenção para a necessidade de aproximação e interlocução direta com os estudantes.
Para a professora de Ciências do Fundamental II do Colégio Ítaca, Maria Aparecida Lico, há “muita informação visual, no entanto os estudantes permanecem quase que com as mesmas dúvidas de 20 anos atrás”. “Falta um conteúdo que o aluno ainda não encontra fora da escola, foi deixado para a instituição fazer isso. Os pais continuam com dificuldade de admitir que o filho cresceu e também não têm a medida de como abordar”, diz a professora da escola localizada no bairro do Butantã, zona Sudoeste de São Paulo. Já para o psicólogo educacional e clínico Antonio Carlos Egypto, a abundância de informações “muito mais estimula que esclarece”. “O adolescente tem acesso à informação geralmente via material pornográfico, que distorce valores e ele permanece com dúvidas básicas, até mesmo sobre como acontece a gravidez.”
Entre as distorções, está o ensinamento do “desejo como algo incontrolável”, como se não pudesse existir “freio, controle”, “como se do desejo a pessoa tivesse que passar para a ação”. Outra distorção diz respeito à ideia de que “a mulher está sempre disponível”. Antonio Egypto ressalva, entretanto, que a imensa disponibilidade de informações chega a ensinar “algumas coisas, como posições, apesar de não ser o melhor material”. “Mas é o que está disponível, já que quase ninguém conversa com eles a sério.”
PAPÉIS DOS EDUCADORES E FAMILIARES
Na verdade, a Lei de Diretrizes e Bases (de 1996) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1997), inseriram a orientação sexual como um dos temas transversais ao currículo escolar, assim como a pluralidade cultural, o meio ambiente, a saúde, o trabalho e o consumo, lembra a pedagoga e especialista em sexualidade Marilza Arcanjo dos Santos Rodrigues. “A escola fica com o desafio de abrir ao debate, nas disciplinas já existentes e de forma transversal, não só a orientação sexual, mas todos os assuntos de responsabilidade individual, pessoal e coletiva”, aponta Marilza, também diretora do Colégio John Kennedy, de Pirassununga, interior de São Paulo. A pedagoga destaca, porém, que a orientação na escola não substitui a educação familiar. À escola compete estudar o corpo, preencher lacunas, informar, erradicar preconceitos e aprofundar conhecimentos, diz. Mas cabe aos pais, segundo ela, oferecer a primeira orientação em cada etapa da construção da sexualidade.
Um dos consultores do Ministério da Educação (MEC) durante o processo de elaboração dos PCN, Antonio Egypto observa que “a família deve deixar bem claros os valores que defende”, enquanto a escola precisa promover reflexão e debates sobre o conjunto dos valores, adotando-se um conceito amplo de sexualidade (Veja texto na página….). Torna-se, assim, papel dos educadores “colocar a relativização dos valores, mostrar que mudam ao longo da vida, das épocas, de uma família para outra, em regiões e culturas distintas, e que não há o certo nem o errado”. “O principal objetivo do trabalho pedagógico é ajudar a pensar, a refletir e para isso prover o aluno de informações”, arremata. Autor e organizador, respectivamente, de “Sexo, prazeres e riscos” (Saraiva, 2005) e “Orientação Sexual na Escola, um projeto apaixonante” (Cortez Editora, 2003), Egypto coordenou o Projeto de Orientação Sexual nas Escolas da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, entre os anos de 2003 e 2004. Um dos pioneiros e principais especialistas em orientação sexual no país, o psicólogo ajudou a fundar o GTPOS (Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação Sexual) e atua junto a escolas privadas, assessorando educadores e realizando atividades com pais e eventualmente alunos.
COMO ABORDAR
O psicólogo recomenda às escolas promover formação continuada com educadores, semanalmente para os que trabalham com adolescentes, “porque envolve a abordagem de temas mais complexos”, e a cada 15 dias para os que atuam com crianças. Também defende trabalhos periódicos com os pais. “Desde que as crianças chegam à escola, os educadores têm que saber lidar com a sexualidade infantil, se não puder capacitar todos, a instituição deve ter uma equipe que possa fazer isso, pois as crianças perguntam sobre sexualidade o tempo todo.” Já no Fundamental II, o ideal é oferecer horário específico de orientação, além de saber trabalhar transversalmente, já que o tema aparece em conteúdos de História, Literatura, Biologia, Geografia e até mesmo Química, quando podem ser observados testes para detecção do HIV.
No Colégio I. L. Peretz, instituição tradicional da Vila Mariana, zona Sul de São Paulo, as abordagens acontecem das duas maneiras: durante o desenvolvimento do conteúdo curricular e também nas aulas semanais dos estudantes com o professor tutor, trabalho orientado pelo psicólogo Bruno Weinberg, que cumpre jornada integral na escola e coordena o Programa de Orientação Sexual, que faz parte, por sua vez, do Programa de Prevenção ao Comportamento de Risco. “A ideia é orientar para uma prática de bem-estar, prazerosa”, proporcionando reflexão e provendo “de informações básicas, como prevenção à gravidez indesejada e a doenças”. “Adotamos o conceito amplo da sexualidade como parte da personalidade de cada um, como uma de suas necessidades básicas”, comenta Bruno, destacando que o “importante é que se forme um ambiente acolhedor para que eles se sintam à vontade para falar das dúvidas mais comuns”.
Nesse aspecto, os educadores Antonio Egypto e Maria Helena Vilela lembram que as situações têm que ser trabalhadas de forma a preservar a intimidade de cada um, alunos e professores. Outra boa dica, agora deixada pela professora Maria Aparecida Lico, que insere a sexualidade no conteúdo de Ciências do Fundamental II do Colégio Ítaca, é que essas abordagens sejam feitas com naturalidade pelo professor, “caso contrário, ele não conseguirá convencer ninguém que este é um aspecto natural da vida”.
CONCEITOS-CHAVES
Tanto os PCN quanto a Declaração dos Direitos Sexuais, ratificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1999, adotam um conceito amplo de sexualidade e fornecem um bom norte para os programas escolares. Segundo Antonio Carlos Egypto, é uma perspectiva que vai muito além do ato sexual em si. “A sexualidade tem a ver com o bem-estar físico, sexual, afetivo e social, o que inclui orientações sobre o combate a doenças, a prevenção à gravidez não planejada, mas também sobre o direito de ter ou não filhos, quantos e quando quiser, o reconhecimento aos direitos sexuais e reprodutivos”, diz. E deve estar diretamente vinculada ao prazer, este tomado como “algo mais profundo que o prazer imediato, o gozo”, pois “envolve o compromisso com o outro, que é o que leva a se construir uma vida mais plena, com mais solidez, sexual e afetiva.”
Conforme a definição da OMS, “o total desenvolvimento da sexualidade é essencial para o bem-estar individual, interpessoal e social”, o que pressupõe reconhecimento dos direitos das pessoas à liberdade, autonomia, privacidade, integridade, segurança, prazer e expressão sexual.
EXEMPLOS DE ABORDAGEM
O Cinema como ponto de partida
Além de psicólogo educacional, Antonio Carlos Egypto é crítico de cinema, mantém um blog atualizado sobre o assunto e sugere a utilização de filmes nas atividades de orientação, conforme alguns exemplos abaixo:
Potiche – Esposa Troféu. França, 2010. Direção e Roteiro: François Ozon. Permite trabalhar o papel da mulher: “É um filme que, por meio de seus bem elaborados personagens, trata da evolução das relações de gênero, focando a mudança e o avanço das mulheres.”
Antes que o mundo acabe. Brasil, 2009. Direção: Ana Luiza Azevedo. Trata de relacionamento, afetividade e escolhas: “O filme tem todo esse enfoque, amplo e generoso, passa muita afetividade, tem uma veracidade notável (…). E faz tudo isso a partir de personagens e situações singelas, recheadas de humanismo. (…) um filme altamente recomendável para os adolescentes e para os educadores.”
(Mais informações: www.cinemacomrecheio.blogspot.com)
Colégio I. L. Peretz
O programa coordenado pelo psicólogo Bruno Weinberg atua em dois eixos: no apoio aos docentes e na abordagem direta com o aluno nos horários dos professores tutores, trabalho feito em parceria com estes. Na experiência com o professor de Português, por exemplo, Bruno relata que ajudou a mediar um debate em sala de aula acerca da relação dos pais com os namorados dos filhos, tema que aparecera no livro didático do 9º ano. Por outro lado, com o professor tutor, são promovidas reuniões semanais “para prepararmos as atividades e avaliar as anteriores”. “No 8º ano, temos trabalhado com alunos os temas de orientação sexual que eles selecionaram no início do ano.”
Colégio Ítaca
Na escola, a orientação sexual é tema curricular, não apenas transversal. Por exemplo, o conteúdo do sistema reprodutivo não se restringe à anatomia, mas envolve a sexualidade. Nas aulas em laboratório, com as turmas divididas, elas estudam a camisinha, fazem testes em tubos de ensaio e “nessa hora surgem as perguntas”, diz a professora de Ciências do Fundamental II, Maria Aparecida Lico. Bióloga, Maria Aparecida costuma projetar o filme A Guerra do Fogo (La Guerre du Feu, produção francesa e canadense dirigida em 1981 por Jean-Jacques Annaud) para os alunos do 6º ano, filme que lhe permite introduzir muitas questões relacionadas à linguagem corporal.
Colégio John Kennedy
A escola desenvolve o projeto Equilíbrio Sexualidade desde 2002. “As aulas acontecem uma vez por semana, de maneira planejada e sistemática e em projetos periódicos, de acordo com a idade, gênero, temas e necessidade dos grupos. Com os pequenos, um exemplo interessante é o trabalho relacionado com a gravidez. A partir desta respeitosa construção, a professora capacitada vai dar andamento, mostrando, através de desenhos, os tipos de partos, a escolha do nome, os primeiros cuidados e principalmente o respeito e o vínculo que a proximidade deste diálogo propicia com os pais”, explica a diretora Marilza Arcanjo dos Santos Rodrigues.
Projeto Vale Sonhar / Instituto Kaplan
Adotado pelas redes estaduais de Alagoas, Espírito Santo e São Paulo, o projeto do Instituto Kaplan busca prevenir a gravidez na adolescência, atuando com alunos do Ensino Médio. Segundo Maria Helena Vilela, o trabalho é feito por meio de oficinas que procuram despertar o estudante para o “sonho, autoconhecimento, identificação das práticas sexuais e riscos de gravidez, métodos contraceptivos e efeitos que geram sobre o corpo (fisiologia da prevenção)”. “Buscamos mostrar o impacto da gravidez no sonho profissional”, diz a educadora, destacando que as escolas precisam definir bem os objetivos e resultados que esperam de seus projetos, para que possam criar estratégias específicas para cada temática e faixa etária. Por exemplo, em um 6º ano, o objetivo maior deve ser a prevenção da gravidez indesejada e de doenças sexualmente transmissíveis (DST), como a Aids. “É um aluno em período de desenvolvimento cognitivo, sem muita capacidade para abstração e voltado mais às coisas concretas, aí trabalhamos a mudança no corpo e cuidados com a saúde e higiene”. (R.F.)
Saiba mais
ANTONIO CARLOS EGYPTO
www.gtpos.org.br
egypto@uol.com.br
BRUNO WEINBERG
Bruno_pe@peretz.com.br
MARIA APARECIDA LICO
Cida.lico@uol.com.br
MARIA HELENA VILELA
www.kaplan.org.br
lena@kaplan.org.br
MARILZA ARCANJO DOS SANTOS RODRIGUES
www.equilibriosexualidade.com
direção@kennedy.com.br