Matéria publicada na edição 69 | Junho e Julho 2011 – ver na edição online
Um modelo de educação na primeira infância
Reconhecido por três anos consecutivos como uma das cinco melhores escolas do País pelas melhores práticas do brincar e do aprender pela experiência, o Centro de Educação Infantil da zona Sudeste de São Paulo tornou-se referência em educação nesta faixa etária. O modelo, construído na prática diária pela sua equipe, parte do pressuposto que o brincar é “linguagem essencial da infância e, apesar de natural e espontâneo, pode ser qualificado pelos educadores”.
por Rosali Figueiredo
Até o final de maio passado, a lista de espera no Centro de Educação Infantil Vereador José Gomes de Moraes Netto, da Prefeitura Municipal de São Paulo, tinha 180 nomes, para uma perspectiva de abertura de apenas 58 vagas para 2012. Construída há 23 anos, a escola tem capacidade máxima para 112 crianças de 1 a 4 anos, em período integral (das 8hs às 18hs). Localizada na Vila Brasilina, região do Cursino, zona Sudeste da Capital paulista, comemora ter sido novamente inclusa entre as melhores escolas brasileiras que adotam o brincar como metodologia de seu fazer pedagógico. O concurso foi realizado pelo 3º ano seguido pelo Programa Pelo Direito de Ser Criança, uma parceria entre a marca Omo, da Unilever, e o Instituto Sidarta, e envolveu, neste ano, a análise de quatro mil instituições de Educação Infantil e Ensino Fundamental I de todo Brasil. As paredes do CEI exibem três placas do “Selo Aqui se Brinca”, versões 2009, 2010 e 2011.
“Nem cuidador, nem alfabetizador”, o perfi l do trabalho realizado pelo CEI José Gomes de Moraes Netto traz a brincadeira como eixo central da organização de sua rotina, das ações e do currículo. “O brincar é linguagem essencial da infância e, apesar de natural e espontâneo, pode ser qualifi cado pelos educadores”, observa a coordenadora pedagógica Shirley Maria de Oliveira. O processo de qualifi cação ocupou os três primeiros anos de atuação da coordenadora junto ao CEI, aonde chegou em 2005. Através de reuniões periódicas com a equipe, estudos, conversas diárias, capacitações agendadas pela própria escola com contadores de histórias e uma cantora de músicas infantis, buscou-se “uma compreensão maior sobre as crianças”, sobre “qual deve ser o perfi l do educador da primeira infância”, relata Shirley.
Segundo a coordenadora, “os professores estavam perdidos entre o cuidar e o alfabetizar”. Até 2002, os centros de educação infantil da Prefeitura de São Paulo eram vinculados à Secretaria Municipal de Assistência Social e em lugar de professores e educadores, auxiliares de desenvolvimento infantil (pajens) é que trabalhavam junto às crianças. Na época, elas quase não saíam dos espaços internos da creche e pouco havia de recreação. Na transição dos CEI’s para a Secretaria Municipal da Educação, os pajens deram lugar aos professores e introduziu-se a fi – gura do coordenador pedagógico, mas todos pareciam inseguros quanto ao trabalho a ser feito a partir dali.
“Quando cheguei ao CEI Vereador José Gomes, observei ainda uma ênfase sobre os cuidados, ao mesmo tempo em que os educadores estavam tentando se legitimar como professores e realizar uma proposta pedagógica, o que os levava, no entanto, a uma ação escolarizante. Percebi que tínhamos o desafi o de não abandonar as práticas importantes de cuidados com as crianças, mas também de não submetê-las a situações de escolarização precoce, não comprometer a vivência da infância”, afi rma a coordenadora. Era preciso, portanto, “aprofundar a compreensão sobre as crianças”, identifi car “as competências necessárias para trabalharmos as linguagens essenciais para um currículo para a infância”.
Atualmente, se existe algum conteúdo escolar, de pré-alfabetização, esse aparece natural (e não intencionalmente) na “aproximação com a linguagem escrita”, quando as professoras trabalham com parlendas, advinhas, poesias, versos e trava-línguas, sempre dentro “da perspectiva da cultura infantil”. A proposta foi desenvolvida paulatinamente e envolveu, em um primeiro momento, “a busca da compreensão da infância por três vias”: pelos estudos teóricos em Psicologia Social, Antropologia, Sociologia, entre outros; pelo resgate das memórias da infância das professoras, através da realização de rodas de conversa e sensibilização para identifi car e valorizar sensações advindas da liberdade de movimento, do contato com a natureza, das interações com crianças de outras faixas etárias, dos cheiros etc.; e pela “escuta atenta e sensível” às próprias crianças, observando-se não apenas suas falas, mas gestos, brincadeiras e reações. “Depois, no horário de trabalho coletivo dos professores, falávamos dessas características, e a partir daí fomos percebendo que as crianças são espontâneas, criativas, corporais e sensíveis. A partir daí fomos também pensando qual currículo precisávamos desenvolver para favorecer ou potencializar as oportunidades para que as crianças pudessem ser crianças”, arremata Shirley.
Foi uma intervenção diária, cotidiana, que, na perspectiva da diretora do CEI, Ana Maria Ricardo Hernandes, formatou um “modelo que me encantou”. Ana Maria chegou à escola há cerca de três anos e reconhece que vinha de outras instituições que permaneciam focadas no cuidar. “No começo, fi quei um pouco com medo de ver as crianças daqui soltas no ambiente externo, mas fui percebendo que a criança, quando mais livre, aprende a circular com segurança, a desenvolver a parte motor e o equilíbrio”, lembra. Segundo Ana Maria, foi ela quem teve que se adaptar à escola, mas a parceria deu certo. A gestora abraçou a proposta e procura hoje organizar o trabalho da equipe (as faltas, por exemplo, são programadas para que as crianças nunca fi quem sem professora), além da administração fi nanceira e contábil, de forma a que o trabalho tenha prosseguimento. “O mais importante é que o diretor e o coordenador pedagógico estejam integrados”, diz.
Com 20 professoras efetivas que cumprem uma jornada diária de 6 horas, uma delas dedicada à própria formação, além de três auxiliares técnicos, um agente de vigilância e dois de apoio, o CEI apresenta uma equipe bem motivada e comprometida. “Procuramos resolver coletivamente os assuntos que dizem respeito a todos, ao mesmo tempo em que cobro de cada um a sua parte, elogio o que está excelente e corrijo, de maneira respeitosa, o que não está legal. O respeito, o incentivo, a qualifi cação e a motivação favorecem o trabalho porque as pessoas passam a se sentir parte dele”, ensina, por fi m, a gestora Ana Maria.
DOS BOSQUES DA ESCOLA ÀS BRINCADEIRAS EM FAMÍLIA
Com cerca de dois mil metros quadrados de área, dois terços livres, o Centro de Educação Infantil Vereador José Gomes de Moraes Netto possui dois playgrounds estruturados, mas os espaços abertos que mais atraem as crianças são o bosque, as cabanas feitas em tecidos dispostos entre uma árvore e outra, as mesas externas onde podem folhear os livros, os morros, os balanços, além do parque da areia e dos cantos do fogão à lenha, do abacateiro e das amoreiras. Parte da rotina de suas oito turmas está organizada de maneira a que os pequenos tenham contato com o ambiente externo por pelo menos uma hora a uma hora e meia pela manhã e pela tarde. Estão sempre acompanhados e orientados pelas professoras, mas circulam livremente, interagindo com os maiores e/ou menores, ensinando e também aprendendo com os colegas.
“Esses espaços são mais favoráveis para o brincar, por isso estão priorizados para as vivências das crianças na maior parte do tempo, é como se fossem o quintal que perderam”, observa a coordenadora Shirley. “O brincar livre e o brincar na natureza trazem ensinamentos fundamentais, elas começam a se sentir parte deste meio ambiente, aprendem a ter cuidado com os bichos de jardim e com as plantas”, complementa. Neste espaço livre, as crianças transformam tábuas em skates ou guitarras, tecidos em cabanas ou redes, movimentos que estimulam a criatividade e expandem a imaginação para um jogo de faz de conta que se desdobra em novos personagens e enredos. “Isso amplia seu repertório e favorece o jogo simbólico”, observa Shirley.
Há momentos em que muitas preferem o recolhimento, mantendo- se em um canto ou com um brinquedo com o qual interagem sozinhas, sem a interferência da educadora. “O que não signifi ca abandono nem que a instituição esteja abrindo mão de seu papel, fi camos sempre atentas, mas brincar é também a possibilidade de a criança viver a solidão necessária, a sua subjetividade dentro de um coletivo, um reencontro consigo mesma, escapando da tutela do adulto e vivenciando a sua condição, a dimensão humana.” Todos respeitam esse intervalo contemplativo, que é favorecido por espelhos distribuídos e pendurados em algumas das estruturas dos playgrounds.
Por detrás, no entanto, de tamanha liberdade, existe muita organização. Os horários de alimentação, higienização, atividades internas e descanso são respeitados com disciplina por todos, crianças e educadoras. E mesmo internamente prevalece a troca lúdica, seja nas salas de cada turma ou no salão do brincar, um espaço multiuso, fl exível, que pode virar pista de dança, área de encenações, de contação de histórias ou de brincadeiras com fantasias, conforme a atividade proposta pela professora. Segundo o modelo desenvolvido nos últimos anos pelo CEI, as ações educativas orientadas priorizam a narração de histórias (em que o professor desenvolve uma maneira própria de contar e desenvolver o enredo), cantigas, leituras (aproximando a criança da literatura e da linguagem escrita), além de ofi cinas de construção, modelagem e pintura, momento em que se dá oportunidade mais estruturada à criação e expressão.
O brincar, entretanto, atravessa os muros da escola e adentra o ambiente familiar. As crianças costumam levar os livros para casa nos fi nais de semana e, agora, a escola irá começar a mandar sacolinhas contendo um kit de brinquedos, como pião, peteca, amarelinha, giz, entre outros, acompanhados por um caderno onde os familiares poderão registrar as experiências compartilhadas com os filhos. . (R.F.)
O EDUCADOR E A RELAÇÃO CONSTRUTIVA COM O BRINCAR
No retorno das férias escolares, uma turma do 1º ano do Ensino Fundamental de uma escola privada em São Paulo observou ovos de um inseto em alguns cantos da porta de sua sala de aula. Curiosas, as crianças foram estimuladas pela professora a pesquisar a espécie de origem do bicho, descoberta que as levou a investigar um pouco mais a vida do animal e a desenhar seu corpo, seu habitat, sua relação com os homens. Mas não parou aí. A experiência ganhou o formato de um livro – “O livro da Maria-fedida”, obra lançada no ano passado pelo Colégio São Domingos, da zona Oeste da cidade. É um bom exemplo do que o educador pode fazer junto das crianças em seu processo de desenvolvimento, de aprendizagem.
“Ele deve observar e trazer informações, dar diretrizes, tomar o inseto como uma demanda da criança, momento em que ele pode organizá-la, dando diretrizes sobre como investigar, olhando se o animal está vivo ou morto, quantas patas tem, para onde está indo, se escuta ou não. Ou seja, o educador vai explorando, questionando, desafi ando e estimulando, numa relação construtiva do brincar”, analisa Renata Meirelles, autora do livro “Giramundo e outros brinquedos e brincadeiras dos meninos do Brasil” (Editora Terceiro Nome), premiado pelo Jabuti de 2008. Graduada em Educação Física e Mestre em Educação pela Universidade de São Paulo, Renata é pesquisadora das brincadeiras típicas do País e membro da comissão de avaliação do Programa Pelo Direito de Ser Criança.
Segundo ela, em lugar de direcionar uma brincadeira, compete ao professor uma postura de acompanhamento, observação e respeito ao espaço necessário para o exercício da autonomia da criança. “O brincar é algo estruturante que potencializa o aprendizado e que não precisamos preencher com conteúdos pedagógicos”, diz. Tampouco existem modelos prontos, pois cada instituição deve encontrar um formato próprio, desde que coloque o “brincar como prioritário em todos os sentidos, tempos e espaços”.
O Programa Pelo Direito de Ser Criança, que neste ano premiou as cinco melhores escolas do Brasil de Educação Infantil e cinco de Ensino Fundamental I “pelas práticas do brincar”, além de outras 26 “pelas boas práticas”, adota cinco pilares básicos para avaliação dessas experiências: se a instituição respeita o direito de aprender através de brinquedos não estruturados; o de viver o mundo através da experiência; o de estar em contato com a natureza; o de experimentar o cuidado com o planeta e com a sociedade; e o de vivenciar a cultura local. (R.F.)
SAIBA MAIS
Ana Maria Ricardo Hernandes
ahernandes2@yahoo.com.br
Shirley Maria de Oliveira
shirley.oliveiras@ig.com.br
Renata Meirelles
www.projetobira.com / bira@projetobira.com