Na periferia um modelo em construção
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Morro Grande, localizada na periferia Norte de São Paulo, região da Freguesia do Ó, mal completou um ano de atividade e já conta com 672 alunos, 33 professores, nove funcionários próprios e treze terceirizados, além de uma equipe pedagógica composta por cinco pessoas: um diretor, duas assistentes e duas coordenadoras. São 21 turmas do 1º ao 9º ano, divididas em dois períodos de aulas. Números elevados para o pouco tempo de vida, mas que ainda assim não a colocam entre as maiores da Prefeitura. No entanto, comparando-se com as antigas ou outras novas unidades da rede municipal, a EMEF Morro Grande se destaca por outros indicadores: em um único ano letivo, em 2009, estabeleceu parcerias com mais de vinte agentes educacionais e culturais, proporcionando aos alunos atividades extracurriculares como roda de leitura, street dance, cinema, teatro, grafite, recreação esportiva livre, escolinha de percussão e de futsal masculino, entre outros. Montou ainda novos espaços de aprendizagem, como o Centro Cultural do Morro Grande, a brinquedoteca e as salas de artes, vídeo, Educação Física, música e contação de histórias.
Isso tudo sem gastar recursos próprios, dos quais não dispõe, já que as escolas públicas quase não têm autonomia para buscar e gerir verbas. As atividades vêm sendo implantadas à base de um modelo de gestão que envolve articulação entre educadores, pais e comunidade; mobilização; comprometimento da equipe; e delegação de papéis em torno de um projeto que trabalha a escola “como um espaço de construção cultural, propiciando aos alunos um conjunto de valores e possibilidades de se colocar coletivamente”. Antes de tudo, portanto, busca-se o consenso de toda a equipe em torno de uma filosofia baseada na “cultura da paz, na sustentabilidade, respeito, ética diálogo, autonomia, afeto e ternura”, observa o diretor Luiz Carlos de Oliveira.
Mestre em Educação pela PUC de São Paulo, ex-professor de Filosofia e ex-coordenador na rede estadual e diretor na rede municipal desde 2005, Luiz Carlos não dispensa novas parcerias e recentemente recebeu uma microempresária interessada em trabalhar voluntariamente com a reciclagem de materiais entre alunos e a comunidade. “O valor forte dessas parcerias vem do efeito que podem surtir na formação integral dos alunos, de forma que eles possam se comprometer e se encantar com a aprendizagem”, diz. São parcerias coerentes aos princípios pedagógicos da escola, ressalva, apresentando e reforçando valores como o trabalho em equipe, o saber ouvir e falar e o aprender a lidar com a diferença.
“Atuamos em um ambiente propício à explosão da violência, em que muitos alunos são vazios de um projeto de vida, portanto a escola precisa de alguma maneira atraí-los para que se comprometam com a própria aprendizagem.” O contexto da periferia produz, em geral, crianças e adolescentes avessos à escola, “que não oferece nada de seu interesse e não está adequada a eles”, conforme apontam invariavelmente os registros deixados pelos educadores nas reuniões de avaliação promovidas periodicamente pela EMEF. Para agravar o quadro, “os pais não conseguem levar nem obrigá-los a ir à escola”, ou, pior, segundo identifica Luiz Carlos, estão completamente ausentes em grande parte da vida deles.
Perfil da gestão
Aproximar escola, comunidade e educadores foi a maneira, portanto, que a EMEF encontrou para desempenhar seu papel, recorrendo- se a um perfil de gestão que Luiz Carlos define como “articulador”. Nem mesmo o Conselho Tutelar ficou de fora dos projetos e dos muitos encontros de discussão, que chegaram a reunir, em um único sábado, cerca de 350 pessoas (a maioria pais e familiares). Talvez não houvesse outra saída, pois ao iniciar os trabalhos na EMEF, em 14 de janeiro de 2009 (a escola ainda não foi inaugurada oficialmente), a equipe se deparou com um quadro de extrema carência dos recursos mínimos, como equipamentos, livros e materiais pedagógicos. Não havia nem mesmo as duas modalidades de verba que a Prefeitura destina periodicamente às escolas, para custeio, pequenos reparos e manutenção (a destinação da verba está atrelada ao número de alunos matriculados no sistema. Como a escola era nova, ela inexistia no banco de dados da Prefeitura).
Somente em fevereiro deste ano as salas de aula receberam cortinas. A internet ainda não está disponibilizada para a sala de informática, porque é preciso esperar que a construtora do prédio e prestadores de serviço contratados pelo município executem uma pequena extensão da rede a partir da secretaria escolar. Além disso, é necessário administrar, diariamente, o transporte de 289 alunos que vêm de outros bairros em vans a serviço da Prefeitura. O jeito foi reunir a comunidade, expor as dificuldades, ouvir sugestões e demandas, criar e apresentar oportunidades, por isso a busca das parcerias.
“Aposto muito na distribuição das tarefas, acredito na descentralização, mas ainda trago uma cultura de querer estar informado de tudo”, autoavalia Luiz Carlos. Isso é importante, pondera, para que se possa tomar decisões. “Sou incansável do diálogo, na linha do educador Paulo Freire, que defendia que este supera qualquer outro instrumento coercitivo.” Outra grande vantagem do diálogo está na possibilidade de se rever demandas. Ou seja, às vezes os colaboradores apresentam algumas necessidades que, a partir de uma boa conversa,podem ser revistas e encaminhadas de outra forma. Por outro lado, o diretor ressalva que a gestão participativa e transparente não pode abrir mão da organização, disciplina e da cobrança de resultados.
“O gestor deve ser humano, flexível, mas exigir ousadia e cobrar resultados”, defende. Não é tarefa fácil, mesmo porque a proposta pedagógica da EMEF Morro Grande aumentou em cerca de 60% as demandas de trabalho para a equipe. Sem autonomia administrativa para recompensar financeiramente os colaboradores ou oferecerlhes cursos de especialização ou aperfeiçoamento, a adesão veio por meio do convencimento. “Deveríamos remunerar os parceiros e ter autonomia para gastar nossa verba em cima de uma demanda diária, com uma flexibilização maior da legislação. Uma escola ‘zerada’ (recém- implantada) como a nossa recebe os mesmos valores que outra unidade estabelecida há muitos anos”, lembra o diretor. Também, em sua opinião, as escolas da periferia deveriam ter liberdade para desenvolver uma política de fomento e estímulo junto aos professores, para evitar a rotatividade. “Não queremos dar um ‘premiozinho’ no final do ano, mas investir diariamente em sua qualificação profissional”, diz.
Resultados
Muitas são as desistências registradas pela escola, não apenas entre educadores, mas junto aos próprios estudantes. O projeto de grafite, por exemplo, que teve grande adesão no início, acabou esvaziado porque os adolescentes recusaram um mínimo de ordenação e disciplina da atividade proposta. Também as aulas de percussão já tiveram mais interessados. “Temos sempre que recomeçar”, aponta Luiz Carlos. Uma de suas mais importantes parcerias vem justamente da Associação Pianoro e de um grupo de pesquisadoras da Faculdade de Psicologia da PUC em São Paulo, os quais desenvolvem o Projeto Travessia. Seu propósito é promover a transição das crianças da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, articular atividades de educação complementar e aproximar as famílias.
“Procuramos oferecer aos professores uma reflexão de suas práticas, de maneira crítica e investigativa, buscando novos caminhos”, afirma Luiz Carlos. Com o Travessia, por exemplo, os educadores recebem orientação sobre a prática das brincadeiras e sua importância na aprendizagem. “Alfabetizar as crianças de seis anos exige rever valores e linguagens e no ano passado tivemos um desafio muito grande, pois tínhamos doze salas com 30 alunos cada. Os professores se comprometeram e, do ponto de vista quantitativo, atingimos as metas.” Do ponto de vista qualitativo, por sua vez, Luiz destaca a preservação do patrimônio (a EMEF não tem pichações, por exemplo) e a participação da comunidade, item que pretende ampliar ainda mais em 2010.
Por Rosali Figueiredo