O QUE É ESSA SÉRIE DE ARTIGOS
Na prática, não é apenas o resultado, jamais definitivo, de anos de prática educacional e reflexões teóricas. É reflexo de minha experiência como pessoa e pai de um adolescente com a Síndrome de Down. Toda minha trajetória profissional, como jornalista e sociólogo, veio ao encontro de um dos momentos mais marcantes de minha vida: o nascimento do Thiago, no dia 22 de fevereiro de 1997, o que me direcionou não só para o dilema inclusão-exclusão, mas também e, sobretudo, para a tênue fronteira, histórica e cultural, entre a chamada normalidade e o seu contraponto, a anormalidade.
O NASCIMENTO DE MINHA FILHA
Dois anos depois ao nascimento do Thiago, nasce minha filha Joyce, o que me levou a pensar que de agora em diante passaria a conviver em minha própria casa com a dicotomia excludente normal/anormal, criada histórica e culturalmente pela nossa civilização (é sempre bom frisar isso).
Busco construir no Thiago o desejo pelo conhecimento, ou melhor, pelo autoconhecimento, fazendo com que os conteúdos apresentados a ele na escola tenham sentido para a sua vida, um significado real em sua existência e também na de sua irmã Joyce. Esse projeto é também sobre e para ela.
VAMOS EMBARCAR?
Convido então você a embarcar nessa singular viagem pelas escolas de meus filhos, desde a educação infantil, passando pela experiência em uma escola da linha democrática, até chegar ao Ensino Médio, onde estão atualmente. Ambos já estão começando a traçar os seus caminhos e o desafio é criar o máximo de autonomia possível para o Thiago. E deixar que ele encontre o seu trajeto, o seu arco íris. seja ele qual for. Cada ser humano é único e tem singularidades próprias.
O SER DIFERENTE?
Essa série de artigos, portanto, não é sobre a Síndrome de Down e sim uma proposta não ortodoxa de como podemos conceber o que é ser igual e diferente na sociedade contemporânea. Não é apenas sobre a inclusão das chamadas pessoas com deficiência intelectual e sim a inclusão de todos nós. Como lidar com todos os fluxos externos que nos afetam cotidianamente e parecem não ter nada tem a ver com nossas vidas particulares?
INCLUSÃO É PARA TODOS
Minha Intenção de Vida não é me tornar um especialista em Síndrome de Down. O que desejo é me conectar ao máximo com uma prática não ortodoxa de como podemos conceber o que é ser igual e diferente na sociedade contemporânea, além de polemizar a clássica separação, cultural e histórica, que sempre fragmentou os seres humanos em modelos binários, tais como normal e anormal; igual e diferente superior e inferior; vitorioso e fracassado, além de muitas outras dicotomias excludentes.
O QUE É, AFINAL, INCLUSÃO?
Como pensar na inclusão em uma sociedade que exige, a todo instante, a entrada de nossas crianças, o mais depressa possível, em um ritmo frenético de vida, que já faz parte de nossa realidade enquanto adultos. Em um contexto, no qual o outro, supostamente menos veloz, tende a ir ficando cada vez mais para trás. O que está em jogo é que, para muitos, inclusão é justamente isso. O estar constantemente correndo atrás do mito da normalidade.
INCLUSÃO DE MÃO DUPLA
Como falar então de uma inclusão de mão dupla, quando muitos pais dos ditos normais dizem: “corram cada vez mais e não olhem para trás, sejam os melhores, ensinando a seus filhos a escolherem como amigos os seus supostos iguais. Ah! Aquele lá não igual a você. Ele é diferente e não acompanha o seu ritmo”. A presença do Thiago, nesse contexto, me forçou a pensar, sentir e refletir sobre uma realidade que, muitas vezes, não é visível aos nossos olhos.
EXCLUSÃO AO CONTRÁRIO
Quanto à Joyce, quantos olhares de indiferença ela teve que enfrentar em seu dia a dia. Não poucas vezes, ela foi ignorada enquanto trataram o Thiago como coitadinho ou aprofundaram o mito de que toda pessoa com Síndrome de Down é uma eterna criança ou mesmo bebê. A própria dicotomia com e sem deficiência é excludente. Parte do princípio de que, de um lado, existe a deficiência e, de outra, uma suposta pessoa sem deficiência, como se isso fosse possível.
Vamos então ao capítulo I (de um total de três) que pode ser chamado de cartografia existencial de uma vida aparentemente pessoal, mas que pode fazer parte de muitos outros fluxos existenciais que, cada um a seu modo, vivem dilemas parecidos. Boa viagem.
DA EDUCAÇÃO INFANTIL AO FUNDAMENTAL:
DA ESCOLA (DE)EFICIENTE À NOVAS FORMAS DE ENSINAR
- Qual é a inclusão que desejamos e
- qual é a que na maioria das vezes são propostas para nós?
- Será que a inclusão, ainda hegemônica em nossas escolas, não consiste apenas em adequar o estereótipo da negatividade a algo supostamente positivo, ou seja, ao mito da “normalidade”?
- Será que a nossa sociedade já aprendeu a lidar com as diferenças humanas engendrando para si uma escola verdadeiramente democrática e sem exclusões?
- O que seria então uma escola denominada como inclusiva?
AS PRIMEIRAS ESCOLAS
Thiago entrou na educação infantil em 1999. A Joyce começou nessa mesma escola um ano depois. Foi uma escola que sempre se posicionou como inclusiva e nessa época, a prática inclusiva ainda era um projeto.
Poucas instituições de ensino se propunham a receber essas crianças ditas diferentes das outras consideradas iguais. Sempre a dicotomia excludente igual (normal) versus diferença (anormalidade).
REPETÊNCIA VIRTUAL
Talvez tenha sido um erro optamos por matricular nossos filhos na primeira escola que se propôs a incluir, mas resolvemos apostar. Estava indo tudo bem, até que ele chegou ao último ano da Educação Infantil, em 2003.
Foi quando a diretora da escola nos chamou para uma reunião e anunciou uma proposta inusitada, que consideramos como uma repetência virtual. Ele não iria para o chamado na época de Pré-Primário. Segundo ela, Thiago não havia repetido o ano no sentido tradicional, mas havia a previsão de que ele não iria acompanhar a dinâmica do ano seguinte, como era o esperado para todos.
Em uma tentativa de explicar melhor, a diretora revelou que o projeto da escola previa a plena alfabetização de todos os seus alunos antes da passagem para o primeiro ano do Fundamental I e que, por conta de prévia exigência, não poderiam respeitar o tempo dele. A crença era que Thiago não conseguiria acompanhar o restante da turma no pré e não estaria indo para o Fundamental plenamente alfabetizado.
EXCLUSÃO SOB O MANTO INCLUSIVO
Indagamos que ela estava falando de uma inclusão adequativa e que, se não totalmente, Thiago estava em pleno processo de alfabetização. Isso sem falar que incluir não é padronizar e que essa repetência poderia afetar a sua autoestima.
Quando a diretora compreendeu que não aceitaríamos essa condição, veio então outra proposta para nós ainda mais indecente. Thiago poderia passar de ano e seguir junto, sobretudo com Guilherme, seu grande amigo na escola, mas teria um conteúdo do ano anterior no canto da sala, estabelecendo aí o que pode ser chamado de uma exclusão sob o manto discursivo de uma suposta inclusão. Não houve acordo e entramos em mais um processo árduo de peregrinação para encontrar uma nova escola.
A NOVA ESCOLA
Nós sempre apostamos na ideia de que uma escola inadequada para o Thiago também não serve para a Joyce. E isso pelo simples fato de que, segundo nossa visão, cada educando tem o seu tempo e aprende de um jeito diferente.
Sempre discordamos de qualquer possibilidade e tentativa de homogeneização e nivelamento para qualquer estudante, independente de sua condição. Portanto, não aceitamos o fato de um tempo diferenciado apenas para o chamado “aluno de inclusão”. Seria pensar que todos os outros aprendem do mesmo jeito em um tempo idêntico.
Encontramos finalmente uma segunda escola, que parecia estar de acordo com nossos princípios naquele momento. Era o Colégio Cidade de São Paulo, um misto de construtivismo com tradicionalismo. O Thiago fez então o pré e o último ano do Fundamental I e a Joyce finalizou a educação infantil.
E OS IRMÃOS?
Nessa escola, a diretora sempre foi bastante interessada e prestativa. Por outro lado, como conectar teoria e prática é sempre complexo, a maioria das professoras e dos funcionários da escola não soube lidar com uma questão muito pouco abordada por quem pensa a inclusão: a dos irmãos.
O empenho da diretora acabou nos estimulando a acreditar na proposta, o que, em linhas gerais, saímos ganhando, pois o Thiago foi sempre estimulado. Começamos a notar, no entanto, certa desproporcionalidade entre como lidavam com sua irmã Joyce.
Preocupava-nos muito, por exemplo, quando o porteiro da escola recebia o Thiago com entusiasmo e a Joyce com um ar meio nebuloso de indiferença, como se ela não precisasse ser recebida de uma forma alegre e envolvente. O mesmo acontecia com diversas educadoras e funcionários em geral.
DISTORÇÃO
Começamos a notar então uma possível distorção do que até hoje é chamado de inclusão. Sobretudo partir daí, o tema irmãos passou a fazer parte de minha preocupação. Enquanto família, nosso princípio foi sempre o de tratá-los de forma igual. Por outro lado, sabemos também que para oferecer oportunidades iguais para todos, é preciso tratar as pessoas de uma maneira diferenciada.
EXCLUSÃO AO CONTRÁRIO
Quando pensamos em inclusão, o que vem à mente, de imediato, são as chamadas pessoas com deficiência. No entanto, outro personagem – não poucas vezes – entra em cena. Trata-se do irmão, que nem sempre recebe a atenção adequada dos pais, o que pode gerar sentimentos negativos em relação ao próprio irmão com deficiência.
A DIVISÃO DO AMOR
No mundo infantil, sobretudo quando as idades são próximas, sentimentos de ciúme e inveja, além da briga pela atenção dos pais, são vistos como naturais, mas podem se tornar problema no exato momento em que os pais partem para a superproteção do visto por eles como o mais necessitado.
É preciso – e não é fácil – saber dividir a atenção e o amor, além de desconstruir o mito de que os filhos sem deficiência não precisam de cuidados. O risco é fazer com que eles se sintam negligenciados e não queridos pelos pais. É como se o filho com deficiência roubasse o colo do outro filho.
Quando o ano de 2005 chegou a seu fim, veio novo impasse em relação ao Thiago: a ida para o segundo ano do Fundamental l. Nessa passagem, ficou claro, no primeiro encontro que tivemos com a possível nova coordenadora pedagógica, que a escola não saberia como lidar com os chamados alunos “diferentes” daquele momento em diante.
Na prática, o que ficou dessa reunião foi um pedido de socorro. E como estávamos de mudança para a serra da Cantareira, pulmão verde da grande São Paulo localizado mais próximo da região norte da Capital, optamos por procurar outra escola. Mais uma peregrinação extremamente cansativa.
O FUNDAMENTAL I:
DISTÂNCIA ENTRE DISCURSO E PRÁTICA
Em nossa árdua e cansativa busca não houve nenhum “não”, até porque tínhamos a legislação a nosso favor, mas frases do tipo “essa escola não é para seu filho” ou “temos alunos especiais por aqui, mas eles ficam anos na mesma série” ou “não conseguem acompanhar”, foi o que mais escutamos.
MÉTODO PAULO FREIRE?
Até que, para nossa satisfação, a diretora da não mais existente Escola Angelli Boni nos garantiu que, não só era inclusiva por princípio, mas também era simpatizante do “método” Paulo Freire. Mesmo sabendo que esse grande educador brasileiro não criou um método e sim princípios, optamos por testar.
Novamente, uma já cultural frase se mostrou verdadeira: “a vida é cheia de contradições”. Apesar de seu discurso inclusivo, o que prevaleceu foi a ditadura do livro didático para todos. Quantas vezes tentei me aproximar da escola solicitando mais tempo para que ambos os filhos assimilassem determinados conteúdos, mas a resposta era sempre a mesma por parte das professoras: “Não há tempo. Tenho que esgotar o que está no livro”.
ALFABETIZAÇÃO
Mesmo assim, o “aluno de inclusão” Thiago era obrigado a seguir o ritmo do livro didático. Não havia tempo para ambos os meus filhos maturarem o conteúdo recebido antes de passar para outro conteúdo. Como é ensinar fração sem antes o educando não ter dominado por completo as contas básicas?
A escola também não soube investir no processo de alfabetização do Thiago. Ao contrário, garantia que não era o momento. Como estava atuando profissionalmente como autônomo, arrumei tempo para, no chamado contra turno, frequentar a livraria Saraiva em sua companhia.
No início, pedia que ele escolhesse livros de seu interesse e promovia leituras em voz alta. Foi necessário apenas um semestre para o próprio Thiago começar a ensaiar suas primeiras leituras. Após algo em torno de um ano, já não era necessário corrigir os erros de leitura. Era só apontar que aquela palavra não era correta e ele próprio tratava logo de se autocorrigir.
AVALIAÇÃO
Enquanto isso, na hora de avaliar o seu progresso do terceiro ano em diante, as professoras praticamente respondiam por ele, enquanto os outros alunos eram submetidos a uma prova que jamais provou nada.
Não é preciso dizer que tal método em nada se assemelha ao que pensava Paulo Freire. Foi aí que, para poder acompanhar mais de perto a trajetória de meus filhos, voltei a estudar as “pedagogias” freirianas, agora sob o viés mais educacional e menos político, se é que isso é possível.
EDUCAÇÃO DIALÓGICA
Não foi difícil verificar que o “método” da escola não era em nada dialógico, já que para Paulo Freire, educar dialogicamente pressupõe escutar a história de vida do Outro. Vale aqui a célebre frase de Paulo Freire. “Não se educa de A para B e nem de B para A. É de A com B, midiatizado pelo mundo”.
Na prática, Thiago fez os últimos três anos do Fundamental I nessa instituição (2006-2009), sendo que repetiu o quarto ano. Isso porque a escola não teve estudante suficiente para abrir o Fundamental II e, por uma decisão nossa, optamos que ele fizesse mais uma vez. Não era o momento de investirmos em outra instituição naquela ocasião. A Joyce, por sua vez, fez todo o Fundamental I nessa escola nesse mesmo período.
O ENSINO FUNDAMENTAL ll
Foi quando entramos em um impasse aparentemente sem solução. Continuar a pensar em uma inclusão sem romper com o chamado modelo tradicional de escola, ainda refém do tempo dos livros didáticos e não dos alunos, não fazia mais sentido para nós.
No que chamamos de inclusão adequativa, Thiago até que estava se adaptando, mas o gargalo do final do Fundamental I nos mostrou que manter nossos filhos (não apenas o Thiago) presos a uma “grade curricular” estava fora de cogitação.
Chegamos a pensar até que foi um possível equívoco submetê-los a esse sistema desde o início de suas vidas escolares. Com todos esses questionamentos, a continuidade desse livro não passa, na prática, de um recomeço, de um novo percurso, com novas dúvidas, indagações e busca de soluções. É também reflexo de que não encontrei mais sentido nas chamadas escolas tradicionais, em que múltiplos dos chamados alunos são tratados como se fossem um só.
FILOSOFIA DA DIFERENÇA
Na realidade, a própria filosofia da diferença já me revelava que essa escola não leva em consideração as singularidades inerentes a cada um de nós. Mas foi viver esse dilema na prática que me fez conectar a teoria à prática.
Sobretudo em relação ao Thiago, sempre fomos pais educadores. Por conta disso, pensamos também no que hoje está se tornando uma saída para muitos pais: a conhecida como HomeScholl (ensino domiciliar), o que era e ainda é proibido pela justiça brasileira.
Nós defendemos os pais que tomaram essa iniciativa e questionamos o poder público por reprimi-los. Tem ainda a proposta de descolarização (que me interessa imensamente), mas optamos na época por uma escola que, para nós, era (e ainda é) diferente para todos os estudantes: a Escola Politéia. A primeira questão que fica quando se pensa na descolarização, é o que ser escolarizado?
É uma questão extremamente polêmica, pois trata-se aqui de instituir algo novo para a grande maioria das pessoas. A meu ver, a descolarização não é ausência total de conteúdo e, muito menos, apenas não freqüentar a escola. Faço aqui um paralelo com certa visão de inclusão que não se pretende adequativa. Melhor dizendo: porque temos obrigação de aprender todo o conteúdo imposto de cima para baixo como se fosse fundamental em nossas vidas? Volto a uma questão já tratada acima. É como se todos os estudantes, cada um com sua singularidade, se tornassem um só no interior da sala de aula.
Estamos diante, portando, de uma escolarização forçada. Se esta concepção estiver correta, não será possível afirmar que descolarização não está querendo ser contrapondo á escola propriamente dita? E sim a uma escola que ainda se pretende hegemônica nos dias de hoje? Me atrevo a dizer, já finalizando esse capítulo, que meu filhos está se formando no tradicional Ensino Médio descolarizado. Mas esse é um temo para outro momento. Voltando ao nosso percurso já traçado, o que é chamada de Escola Democrática merece ter um capítulo específico.
Guga Dorea é Jornalista e Sociólogo. Atua hoje como educador em cursos de Pós – Graduação na área da Inclusão Social pela UNISED, além de criador do projeto “Conectando Diferenças: oficina de escrita criativa” para Pessoas com Deficiência ou dificuldades de aprendizagem e de participar do Grupo de Estudo sobre a Filosofia da Diferença da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)