A internet e jogos eletrônicos alcançam um grande número de pessoas de diferentes culturas em vários países do mundo. Isto é uma percepção indiscutível. Mas, existe uma realidade sem fronteiras que cresce quando se constata o abuso duma prática individual que, além de causar danos ao próprio usuário, prejudica toda a comunidade. Aqui, as referências são aos hábitos e comportamentos no uso da internet e dos games que comumente estão inseridos no quadro da compulsão e vício de muitas pessoas.
A preocupação sobre o vício em jogos eletrônicos é tão grande que a Organização Mundial da Saúde avalia a possibilidade de inserir o problema no rol de transtornos psiquiátricos na Classificação Internacional de Doenças (CID). A medida é bem-vinda porque a designação do problema como doença num código global permite a definição de regras para que seja oferecido o tratamento mais adequado. A mudança auxilia muitas pessoas, por exemplo, a cobrarem assistência médica provida por planos de saúde ou poder público dado à condição de doença.
Necessário dizer que os debates não se resumem apenas à questão dos jogos eletrônicos quando se trata de distúrbio psiquiátrico, pois o entendimento do contexto social da atualidade é fundamental. Percebe-se que, hoje em dia, as sociedades de modo geral valorizam muito mais a realização dos desejos e vontades individuais. E, num primeiro momento, a observação deste cenário indicaria certas dificuldades para o estabelecimento dos limiares entre prazeres a todo custo e a satisfação pessoal. Esta situação se traduz em obstáculos para a definição das fronteiras entre satisfação e a própria doença.
Mas, de fato, há um limite de hábitos e comportamentos no qual a pessoa adoece. O sinal vermelho é dado quando alguém sente maior necessidade de estar na internet além do uso como instrumento de comunicação ou de trabalho. O desejo pelo acesso à rede via smartphone, tablets e computadores assume lugar primordial na vida da pessoa. Esta situação está supervalorizada num hábito que se torna uma repetição de comportamento em busca da satisfação. Na prática, o desejo pela internet ou mesmo jogos eletrônicos está no primeiro plano. Qualquer compromisso social ou familiar é relegado para o escanteio.
A questão do desejos e vontades caracteriza o indivíduo e se relaciona a uma diferenciação com sociedade quanto mais a pessoa concentra energias naquilo que se deseja. A diferenciação pode ocorrer em sentidos opostos. A pessoa percebe que a sociedade não tem condição de satisfazer desejos e vontades particulares e cai no processo de vitimização. Ou ainda, a pessoa crê na sua notoriedade e acredita ser mais importante que os demais. A ideia de satisfação do desejo de maneira exemplar faz a pessoa ganhar a notoriedade para, logo depois, cair no esquecimento.
Esta segunda característica é justamente o que ocorre quando se aborda vício na internet. É a busca pela diferenciação e notoriedade que, por muitas vezes, acontece por coisas básica ou mesmo banais. Exemplos não faltam, como uma pessoa que almoça e fotografa sua refeição para ganhar likes no Facebook. A tentativa da notoriedade se suporta naquilo que é banal e usual do ser humano. Este é um caminho que leva ao sentimento de solidão. E a frequência e intensidade deste sentimento são individuais, não sendo possível serem compartilhados com outras pessoas.
Quanto maior o sucesso dos desejos e vontades particulares, mais próxima será a solidão. Os relacionamentos, o convívio social e familiar, os compromissos, escola e trabalho ficam para segundo plano. E, diga-se, não há possibilidade de interpretação ou julgamento moral daquela pessoa quando se insere um hábito ou comportamento num código internacional de doenças. Até porque ela vive num cenário de compulsão, de desejo por aquela situação que a faz descumprir com compromissos sociais.
No momento em que a doença se desenvolve, existe a tendência de isolamento social. O processo traz um vazio existencial, é depressivo e as pessoas perdem as capacidades e sensibilidades sociais. Começa a se confundir os compromissos reais com os da fantasia ali instaurada. Esta lógica fica clara quando um casal sul-coreano, anos atrás, deixa o próprio filho morrer de inanição por conta do vício da internet. O motivo é mais assustador, pois eles relegaram a vida do bebê para alimentar uma filha virtual num jogo on-line.
Na realidade, o sinal vermelho é dado quando a pessoa perde o controle sobre si. Existe a impossibilidade de fazer ou ser diferente, não há escolha e isto traz problemas concretos como falta de perspectiva de vida futura. Um viciado não entende as regras. Não sabe a hora de jogar e a hora de jantar com a família. Aliás, crianças e adultos têm compromissos sociais de ordens diferentes. Evidentemente, a situação de um adulto que fique até tarde sem dormir para jogar ou navegar pela internet possa ser considerada mais grave e falta de responsabilidade.
A pessoa sofre, a família sofre. Mas a doença é caracterizada pela incapacidade de fazer diferente. É justamente para a prevenção e cuidados no tratamento desse cenário de vício em jogo que a psiquiatria entrarem cena e, por isso, a medida da OMS é bem-vinda e ajudará muitas pessoas e famílias que lidam com o dilema no seu dia a dia.
Por Cirilo Tissot, médico psiquiatra, especialista em vícios e compulsões e diretor técnico da Clínica Greenwood