Matéria publicada na edição 60 | Agosto 2010 – ver na edição online
Como fazer?
Inspirada no paradigma da Educação para Todos e na Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiências, a legislação brasileira reafirma o seu compromisso com a inclusão. Mas 20 anos após iniciar um processo de mudança na área, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Brasil ainda vê as escolas com dificuldades para “traduzir isso em ações práticas”.
Por Rosali Figueiredo
A nova Resolução Federal 04/2010, publicada em 14 de julho no Diário Oficial da União, contendo as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, acaba de ratificar as normas anteriores de inclusão dos alunos com necessidades especiais no ensino regular. ”A Educação Especial, como modalidade transversal a todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, é parte integrante da educação regular, devendo ser prevista no projeto político-pedagógico da unidade escolar”, determina o Artigo 29. Incluem-se “estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação nas classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), complementar ou suplementar à escolarização, ofertado em salas de recursos multifuncionais ou em centros de AEE da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos”, complementa o parágrafo primeiro.
O documento publicado pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional da Educação (CNE) endossa o Decreto Federal 6.571/2008 e a Resolução 04/2009, específicos à educação especial. Também cumpre com recomendações de O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), que já defendiam a sua inserção no ciclo regular de ensino. No Estado de São Paulo predominam legislações que preveem a inclusão nos moldes propostos pelo arcabouço federal, o qual adota, na verdade, o conceito de Educação para Todos, que começou a ganhar corpo a partir dos anos 90, notadamente com a Declaração de Salamanca, na Espanha, em 1994. Está ainda muito vinculada à perspectiva dos direitos humanos, comenta Marília Costa Dias, pedagoga, mestre em Atendimento Educacional Especializado pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do curso de Pós-Graduação em Educação Inclusiva do Instituto Superior de Educação Vera Cruz. O marco desta política foi a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiências, realizada pela Organização das Nações Unidas em 2006 e ratificado pelo Brasil dois anos depois.
Conceitos & suportes
Isso tudo, observa a especialista, “colocou maiores desafios para as escolas, que têm que se adequar para contemplar toda a diversidade existente entre nós, pois as diferenças nos são inerentes. O conceito de inclusão abarca as diferenças de ritmo, emocionais, de personalidade, entre outros”, acrescenta Marília, também gerente técnica da APAE de São Paulo. A pedagoga defende, inclusive, que se adote a perspectiva da inclusão de alunos com dificuldades emocionais decorrentes da desestrutura familiar, como a criança de rua ou moradora de abrigos públicos, além das vítimas de violência física e/ou sexual. Nesse sentido, o lema Educação para Todos abraça o social, diz.
Segundo a especialista, o País está bem servido em termos normativos e legais quanto às necessidades especiais mais específicas e encontra grande desafio para “traduzir isso em ações práticas”. Para o sistema público de ensino, as legislações preveem a oferta de recursos variados de apoio, como o próprio AEE, a formação de professores e a acessibilidade arquitetônica, nas comunicações e informações, nos mobiliários, equipamentos e nos transportes, entre outros. Em São Paulo, a Secretaria Estadual disponibiliza o Centro de Apoio Pedagógico Especializado (Cape) para a sua rede desde princípios da década, além de profissionais em cada Diretoria de Ensino (para orientação de oficinas pedagógicas) e salas de recursos e professores especializados para as escolas que apresentarem demanda.
“Todas as escolas estaduais estão abertas para matricularem alunos com deficiência, altas habilidades e/ou superdotação e transtorno globais do desenvolvimento e recebem recursos financeiros, materiais pedagógicos específicos, equipamentos e os responsáveis pelo trabalho pedagógico recebem formação continuada para isso”, informa o Cape, por meio da assessoria de imprensa da Secretaria. De fato, na Escola Estadual Romeu de Moraes, localizada na zona Oeste de São Paulo, há uma sala de recursos e uma especialista para atuar individualmente com cada aluno que apresentar necessidade de apoio, sem, no entanto, tirá-lo do contexto de aprendizagem de sua turma. A pedagoga Maria Rosa de Sousa Pereira é quem dá esse suporte, atendendo, quando solicitada, ao próprio professor. A Romeu de Moraes tornou-se referência na rede em inclusão, acaba de receber um professor intérprete em Libras, passa por obras de adaptação para a acessibilidade física, mas aplica o conceito em uma perspectiva mais ampla, envolvendo a social. A Escola recebe muitos adolescentes provenientes de um abrigo da Prefeitura, localizado na região (Leia mais sobre o trabalho da Romeu de Moraes na página …).
Entretanto, a rede privada apresenta outra realidade. “Esta é uma grande discussão, pois se a inclusão exigir toda uma estrutura paralela de apoio, fica muito difícil para a escola bancar”, afirma Karin Martinho Nogueira, uma das mantenedoras do Colégio Magister, da zona Sul de São Paulo. Diretora administrativa da instituição, Karin conta que providenciou toda uma estrutura física que permitiu acolher uma aluna cadeirante, mas que para as demais necessidades especiais, procura conversar com os pais e buscar junto com eles outras opções em que os filhos possam ser mais bem acolhidos. “Orientamos e explicamos que em alguns casos o aluno não terá condições de ser bem atendido”, diz.
Segundo a Secretaria Estadual da Educação, “a rede privada tem autonomia para construir a sua proposta pedagógica sempre baseada nas legislações federais e nos Pareceres do Conselho Estadual”. A Deliberação 68/2007, do Conselho Estadual da Educação (CEE), recomenda que o aluno especial seja recebido “preferencialmente nas classes comuns” de todo sistema de ensino, no entanto, deixa uma porta aberta, ao orientar as instituições a buscar “intercâmbio e cooperação” com as demais escolas no sentido de “proporcionar o aprimoramento” das condições de qualidade da educação.
Na rede estadual, isso se traduz ainda em recursos como formação continuada dos professores (em diferentes modalidades, como Libra, Braille, atendimento a deficiência intelectual, educação física adaptada etc.), mobiliário e materiais didáticos próprios, equipamentos eletrônicos para o atendimento do aluno com deficiência visual, afora a sala de recursos e os especialistas.
Em sala de aula
Na verdade, avalia a pedagoga Marília Dias, “em sala de aula, o professor precisa ter material e recursos adequados para qualquer aluno, incluindo os de necessidades especiais e a possibilidade de contratação de profissionais especializados quando houver necessidade”. Segundo ela, a política de inclusão exige da escola ou Estado um investimento continuado em formação e o suporte de direção, coordenação e até de um segundo professor em vários momentos da rotina.
Duas outras especialistas na área, Márcia Icléa Bagnatori e Magali Bussab, ex-coordenadoras da Associação para o Desenvolvimento Integral do Down (ADID) e pós-graduadas em Educação Especial pela USP, avaliam que há situações, como a deficiência auditiva e de fala, por exemplo, que exige um processo anterior de alfabetização com profissional especializado. Já nas deficiências múltiplas ou duplas (física e intelectual), o trabalho deve ser feito em outro ambiente, por meio de parcerias com entidades que atendam a esse perfil de público, observam. Mas nos demais casos previstos pela legislação, a grande barreira à inclusão reside na falta de profissionais qualificados e capacitados. “As universidades não fornecem cursos de capacitação, são os próprios professores que estão buscando essa formação, mas é difícil encontrar oferta.”
O educador social Paulo Sérgio Miranda, professor da ADID, afirma que os próprios alunos os ensinam a encontrar “a melhor forma de passar as informações”. Já a professora Marlene Lugli Tatonetti Roder, com experiência de dez anos na ADID, aponta que a inclusão favorece a todos os alunos, que aprendem a conviver com a diversidade, “a ter mais paciência e a controlar a ansiedade”. “Os pais têm receio desse convívio, mas o ganho é maravilhoso para todos.”
Na E.E.Romeu de Moraes, o ” olhar do resgate”
Pesquisa divulgada no semestre passado pelo Ministério da Educação e baseado no Censo Escolar de 2009 revela que o índice de acessibilidade na rede pública é de 14,6% e, na particular, de 29,7%. Quem visita a Escola Estadual Romeu de Moraes, na região da Lapa, em São Paulo, sente bem as dificuldades para que se possa garantir a inclusão. É preciso um investimento diário em ações, que vão desde o suporte individualizado para cada aluno que venha apresentar alguma dificuldade de aprendizagem e inserção no meio, a obras físicas, como a implantação de rampas, corrimãos, pisos táteis, elevadores, banheiros adaptados, mesas, cadeiras, entre muitos outros recursos do mobiliário.
Mas o principal desafio reside em um trabalho contínuo e persistente de formação do educador, em direção àquilo que a professora Maria Rosa de Sousa Pereira define como “o olhar do resgate”. “É quando o aluno começa a produzir, fazer atividades e a agir, saindo de um estágio de recusa”, explica. Por meio deste olhar, mobilizam-se os educadores, os próprios alunos e a comunidade no sentido de fazer com que a inclusão repercuta nos âmbitos social, cultural, emocional e, claro, também intelectual. Assim, merece destaque o trabalho feito junto aos estudantes para que aprendam a conviver com a diversidade, incluindo a cultural. Ali convivem diferentes tribos de jovens e adolescentes e organizam-se grupos de apoio entre os próprios estudantes para atuar com os mais novos, de forma a auxiliá-los em suas dúvidas e conflitos cotidianos. Finalmente, o ciclo da inclusão é completado pelo estímulo ao trabalho do grêmio estudantil, responsável pela programação de festas e de campeonatos esportivos; e pelo encaminhamento para estágio (turmas finais do Ensino Médio), para a aulas extras de inglês oferecidas pelo Estado ou oficinas, programas e cursos pré-vestibulares disponibilizados pelos parceiros.
“Somos uma escola inclusiva há 15 anos e sempre atendemos a pessoas com necessidades especiais, desde o emotivo ao físico, auditivo, visual e intelectual”, afirma um de seus coordenadores, Arnaldo Aparecido Tiozzo. Ele ressalva, no entanto, que o enfoque cresceu e deu origem ao “Projeto Não Perderemos Você”, em que a inclusão se estende “ao cultural, econômico, social e ao conhecimento”, enfim, ao combate à evasão e à garantia de acesso à formação integral, acrescenta. O propósito, segundo ele, é “criar um ambiente favorável à escola, que muda a disponibilidade do aluno em relação à instituição” e abre caminho para esta inclusão mais ampla.
O “Projeto Identidade – Quem Sou Eu?” ilustra bem esse processo diário de investimento no aluno. Cinco alunas do Ensino Médio desenvolvem atividades diárias e voluntárias, em horário invertido, junto aos colegas do Ensino Fundamental II. Elas aproveitam intervalos e algumas janelas do período para propor discussões, pesquisas ou produções em torno da identidade de cada um ou, simplesmente, bater papo. É um processo de amadurecimento, tanto delas quando dos menores, destacam Arnaldo e a vice-diretora Denise Ribeiro Rezende, o que ajuda o grupo “a acreditar e a apostar em alguma coisa, a gostar da escola”.
O Projeto é integrado por Julia de Oliveira Amatuzzi, Bruna Barbosa Angelonio, Maria Clara Tarquínio, Francielle Franco Pereira e Rogéria Sousa de Oliveira, ela mesma protagonista de uma grande história de inclusão e superação. Aos nove anos, Rogéria vivia nas ruas com a mãe, até que conheceu educadores que lhe mostraram a opção de ir para um abrigo da Prefeitura. Mora lá desde então, está com 17 anos e estuda no Romeu desde a 5ª série, mas chegou e ficou durante um bom tempo “como aluna rebelde que precisava se incluir neste grupo”, observa a vice-diretora. Hoje Rogéria é ativista do Estatuto da Criança e do Adolescente, participou como delegada de conferências sobre o tema e integra a comissão organizadora dos encontros regionais.
Um professor especial
Lançado no começo de julho em São Paulo, o livro “Projetos Especiais para alunos maravilhosos” (Arte & Ciência Editora), de Márcia Icléa Bagnatori, Magali Bussab e colaboradores, traz o relato minucioso da aplicação de 14 projetos diferentes projetos de aprendizagem na ADID (Associação para o Desenvolvimento Integral do Down), especializada no atendimento a crianças, jovens e adultos portadores da Síndrome, e localizada na zona Sul de São Paulo.
As autoras, ex-coordenadoras da ADID, defendem a Pedagogia do Projeto como “alternativa bastante eficaz” aos processos de ensino, “pois tem uma relação direta com a sala de aula”. Além da descrição dos projetos, no entanto, em áreas como produção de texto, de imagens em movimento, artes, aplicação de jogos, encenação de espetáculo musical, entre outras experiências, Márcia Icléa e Magali destacam na obra que “o professor que trabalha com alunos com necessidades especiais, ele também o é (especial”). Isto porque, este educador, “reformula seu plano de ensino para dosá-lo de acordo com a capacidade de seus alunos”; “usa o material didático existente na escola ou elabora-o ou, ainda, solicita sua compra e/ou improvisa”; “avalia-se quanto à metodologia utilizada e solicita ajuda, se necessário”; “durante suas aulas, participa integralmente junto aos alunos, independentemente da solicitação”; “detecta o que precisa melhorar na dinâmica escolar, sabendo administrar aspectos da interação professor/aluno, professor/professor, direção, coordenação, familiares e, ainda, em seu desempenho em sala, com o aluno.” (págs. 8 e 9)
Segundo a equipe pedagógica da Escola Romeu de Moraes, este tem que ser um professor especial, pois além de “estar preparado e possuir conhecimento técnico, é preciso, sobretudo, boa vontade”. “Tem que querer”, finaliza o coordenador Francisco dos Santos.
Saiba mais:
José Ricardo Grilo
Email: josericardo@unoeverso.com.br
Paula Zurawski
Email: mariapaulazu@gmail.com