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Outros Tempos, outras Matemáticas

Depois de mais de trinta anos atuando como professor de Matemática, ao invés de convicções e serenidade, o que marca minha vida profissional são dúvidas e inquietações, O cenário definido, as situações rotineiras e o tão esperado “clima controlado” parecem nunca chegar. Ao contrário, falar de Matemática a jovens, adolescentes e até adultos constitui aventura diária na qual o próprio cenário é sempre desconhecido e talvez o inesperado seja a única certeza possível. E, pensando bem, não constitui nenhum exagero afirmar que, mais precisamente em nossos dias – quando as transformações tendem a acontecer em ritmo cada vez mais frenético -, a situação é bem mais exacerbada que em outros tempos. O que acontece, de fato? Quais as razões pelas quais o ensino da Matemática tende a ser algo tão complexo e controverso? Campo do saber mais difícil que os outros? Distância considerável entre mestres e alunos? Saber desinteressante num mundo ultra tecnologizado?

Bem! Aqui vai uma tentativa de resposta – sem qualquer pretensão de precisão – sobre um dos aspectos que levam a tais dilemas. Afinal, quem ousaria garantir-se dono da verdade numa seara tão vasta quanto esta? É que os alunos nunca são os mesmos. E – surpresa! – a Matemática também não.

Em primeiro lugar, é mais do que óbvio que indivíduos e sociedades mudam sempre. O certo, já dizia Heráclito há mais de 2500 anos, é a mudança. Num planeta que se transforma – geográfica, ecológica e produtivamente -, não há como as pessoas não seguirem tal curso. Então, mudamos sempre! Não adianta esperar ou desejar o contrário. Seja no plano físico, intelectual ou psicológico, o humano sempre deixa um eu para trás e vai oferecendo pessoas novas ao mundo. Desta forma, é normal constatar que os alunos que encontrávamos há cinco anos fossem bem diferentes daqueles que vemos, hoje, nas salas de aula. Só que, lembro mais uma vez, as mudanças nunca foram tão bruscas e rápidas. E é indiscutível que situações diferenciadas exigem tratos e atenções diferenciadas. Por esta razão – e por outras mais – os mestres também encenam esta peça e circulam sem pudor pela grande roda de mutações que vivemos. Daí se concluir que, se os personagens da epopeia não são mais os mesmos, o espetáculo certamente mudará. E a nossa Matemática, enquanto campo do conhecimento a ser ensinado e aprendido, também já é outra. Explico.

É claro que podemos afirmar que os números são sempre os mesmos: 4 será sempre o símbolo que representa quatro unidades de alguma coisa; e não dá para discutir que 106 representa um milhão do que quer que estejamos a mensurar. Um triângulo é, ainda, aquela figura plana com três lados e três ângulos internos – e, felizmente, o nome também não mudou. Mas, então, que história é essa de dizer que a chamada “ciência exata” está diferente, ou que vive mudando? Estaríamos à beira de um colapso lógico-metafísico sem precedentes? Estaríamos nos aproximando rapidamente da bancarrota cósmica? Nada disso!

Talvez a situação aponte na direção justamente oposta àquela que tais ideias podem evocar. O que quase sempre nos esquecemos é de que a Matemática constitui invenção humana. Aquela ideia – fantástica e linda – de que a “matemática universal” já estava escrita aí e nós a descobrimos não coincide com as últimas descobertas e especulações , principalmente aquilo que rolou no século XX. Estudar Matemática, hoje, passa, sem dúvida, pelo exercício crítico e corajoso de também se destruir castelos e enfrentar paradoxos. Já na primeira metade do século XX, gente como Kurt Godel nos fez pisar bem mais leve neste terreno: nem todas as verdades matemáticas são demonstráveis na própria Matemática. Novas geometrias – não euclidianas -, teorias bem recentes como a do Caos, por exemplo, podem ser vistas como grandes descobertas do humano que desbrava o mundo. Entretanto, também podem representar correções de rota, mudanças de paradigmas. E – filosofando um pouco – se “absolutos” podem ser reparados, é porque estão muito longe de ser absolutos e, muito menos, poderiam representar verdades eternas. Certa feita, um aluno de 14 anos me disse que a dízima periódica talvez seja uma incapacidade do sistema decimal – “humano, demasiado humano” – de representar precisamente algo como a terça parte de um inteiro, por exemplo. E poderíamos dar muitos outros exemplos da imperfeição terrena da Matemática. Ainda bem!

Mas, o que acontece, hoje – e que nós, os velhos mestres, podemos não perceber de pronto -, é que os nossos estudantes (aqueles que, a priori, não sabem) possuem visões diferentes das que se tinha no passado. Antes, aprender era encontrar verdades escondidas, prontas e acabadas, num mundo dado e perene. Hoje, aprender é entrar no trem de mudanças, quebras de verdades e transformação do absurdo em possibilidade real.

Muitos de nós até dirão que isso não é nenhuma novidade, pois o conhecimento sempre caminhou através e a partir de mudanças. O dado novo é que, hoje, as coisas andam em ritmo supersônico. O que era certo no ano passado, hoje pode não fazer mais nenhum sentido. E – vamos extrapolar – depois de amanhã poderá ser revitalizado a partir de novas descobertas. E o mais significativo de tudo é que as cabeças das pessoas vão aprendendo e se acostumando a ver tudo nesse ritmo. Ver é, também, rever e prever. Entender pode ser, de repente, começar a contestar. Aprender pode ser o mesmo que começar a construir uma bela estatueta que sabemos que nunca será terminada em vida. Um gosto de “quero mais” – ou de “o que virá depois disto?” – é a sensação sempre presente em cada novo aprendizado.

E, pasme-se, até com a Matemática – antigo símbolo de saber perfeito, que nos haveria de trazer a ordem e a felicidade – acontece isso. A cada momento de descoberta da ciência dos números, sentimos que – e, de certa maneira, nos preparamos para isto – uma questão crucial e inédita poderá surgir. E um fato ainda mais inquietante: nossos alunos não se convencem mais, com tanta facilidade, das coisas que lhes propomos ou afirmamos. As calculadoras são, hoje, partes do nosso cérebro. E, apesar de insistirmos em memorizações de algoritmos, nosso jovens já percebem que o cérebro pode ser poupado de certas tarefas enfadonhas. Relógios analógicos tornam-se, a cada dia, peças estranhas aos nossos jovens – estes, hoje, nascem e crescem digitais! Qual a magnitude que pode representar o termo “grande distância” para quem viaja, a hora que quer, de São Paulo a Tóquio em segundos? “Por que devo treinar tantos destes cálculos – me questionava, dia desses, um aluno – se as empresas em que deverei trabalhar vai me cobrar o ritmo do computador?”

Sim, a Matemática pode estar mudando a cada nova entrada ou saída nossa em sala de aula. Em cada nova demonstração ou resolução de problemas. As coisas acontecem diariamente como se uma nova etapa da construção da ciência estivesse em curso. E, é óbvio, não dá para se trabalhar com sossego, convicção ou trajetórias pré-definidas. Números, formas, verdades absolutas? São outros tempos. Outras Matemáticas.


Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: joao@abcdislexia.com.br ; www.abcdislexia.com.br

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