Quando abrimos os ouvidos e começamos a dar mais atenção aos sons que nos rodeiam, percebemos como eles nos afetam de maneira positiva e negativa.Com o crescimento populacional e os avanços tecnológicos, os sons que constituem as paisagens sonoras dos nossos ambientes cresceram em quantidade e constância. Entender que somos os compositores dessas paisagens sonoras é o primeiro passo para a reconstrução das mesmas, caso elas estejam nos afetando negativamente.
Dentro de uma sociedade, o convívio em grupo, principalmente em grandes centros urbanos, é difícil. E como a paisagem sonora é resultado das ações e escolhas de todos que convivem num mesmo espaço, muitas vezes a modificação da mesma e a escolha dos sons que a compõem pode se tornar inviável. Principalmente quando dependemos de grandes mudanças, que envolvam o poder público, como excesso de ruído dos ônibus, por exemplo.
Mas quando pensamos no micro, no espaço em que atuamos e temos um determinado controle, podemos ficar aliviados, porque podemos agir, sim, e promover mudanças.O ambiente escolar pode ser entendido como uma comunidade. Tem diversas pessoas atuando em diferentes funções, uma rotina que se repete e muitas pessoas compartilhando o mesmo espaço, criando e interagindo com sons de dentro e do entorno do espaço físico onde a escola se insere.
O desgaste físico e mental que a poluição sonora promove nos alunos e professores afeta de maneira direta na capacidade de aprendizado, na concentração e no ânimo de todos. A escola tem o papel de educar, de instigar seus alunos a serem cidadãos engajados e atuantes. A melhor maneira de se fazer isso é praticando, com projetos que estimulem o espírito de pesquisador, de investigador e até de empreendedor.
Um deles é a reconstrução da paisagem sonora, a partir de um projeto acústico, no qual serão escolhidos os sons que queremos preservar, incentivar ou eliminar.O intuito não deve ser, simplesmente, conquistar o silêncio, mesmo porque o conceito de silêncio é algo relativo.
Na década de 1950, o compositor norte-americano John Cage, com o intuito de encontrar o silêncio absoluto, visitou a câmara anecoica da Universidade de Harvard. Essa câmara isola seu interior de qualquer ruído externo. Porém, dentro dela, Cage ainda ouvia dois sons distintos: um agudo e um grave. Depois ele descobriu que o som agudo era do seu sistema nervoso e o grave, da circulação do sangue, dos batimentos cardíacos. Chegou à conclusão de que o silêncio absoluto não existe.Então, podemos entender o silêncio como a ausência relativa de sons audíveis.
Estimular o silêncio no ambiente escolar é uma das primeiras tarefas do projeto acústico. No livro “A afinação do mundo” (página 291), o compositor e escritor canadense Murray Schafer sugere um exercício muito simples para o início de um projeto acústico:
“A primeira tarefa do projetista acústico é aprender a ouvir. Limpeza de ouvidos é a expressão que utilizamos.Muitos exercícios podem ser imaginados para ajudar a limpar os ouvidos, mas os mais importantes, a princípio, são os que ensinam o ouvinte a respeitar o silêncio. Este é especialmente importante em uma sociedade ocupada e nervosa. Um exercício que propomos frequentemente aos nossos alunos é declarar moratória à fala por um dia inteiro.Parar de produzir sons durante certo tempo e bisbilhotar os sons feitos por outras pessoas. É um exercício desafiador e até mesmo amedrontador, e nem todos podem realizá-lo, mas os que fazem falam disso, mais tarde, como de um evento muito especial em sua vida.”
Existem muitos exercícios que podem ajudar nessa tarefa de “limpar os ouvidos”. Outro que Schafer sugere é o de procurar um som com características bem específicas. Por exemplo: proponha aos alunos e professores (e a você mesmo, gestor) que encontrem no ambiente escolar um som que seja agudo e longo. O mais importante nesse exercício não é o resultado, mas o período investigativo, pois para achar esse som agudo e longo, teve-se que prestar atenção e analisar muitos outros sons.
Outro exercício muito interessante e que pode ajudar muito na reconstrução da paisagem sonora é mapear o sons do ambiente.Existem diversas maneiras de se fazer isso. Vou sugerir uma, que pode ser adaptada às diferentes realidades: num papel, desenhe três círculos, um pequeno, um médio e um grande, um em volta do outro. Deixe um bom espaço entre eles. O círculo central representa o espaço em que você está, sala da direção, por exemplo. Deixe a porta aberta para realizar esse exercício. Anote os sons que se originam na sua sala (se precisar, feche os olhos), mas que não são produzidos por sua ação (o ruído do ventilador, por exemplo). Em seguida, volte para seus afazeres, mas continue com a escuta ativa, prestando atenção e anotando todos os sons que nascem na sua sala, agora, aqueles que você produz, comoo arrastar de cadeira, por exemplo. Depois de preencher o primeiro círculo, continue no mesmo ambiente, na sua sala, mas agora anote, no segundo círculo, o do meio, os sons que são produzidos nos arredores da sala, mas ainda dentro da escola (os sons das crianças no pátio, nas salas vizinhas, da cozinha da escola, por exemplo). E para finalizar, anote os sons do terceiro círculo, o mais externo, que representa o espaço físico ao redor da escola; sons originados na rua, nas casas e estabelecimentos vizinhos.
Preste atenção para o fato de que a paisagem sonora é algo em constante construção e modificação. Portanto, faça mapas em diferentes horários e diferentes dias. Cruze as informações e perceba quais são os sons que se repetem e fazem parte da rotina. Perceba também se o excesso de ruídos está localizado em determinados períodos, como o horário de refeições, saída e entrada dos alunos, ou se a poluição sonora é constante no dia todo, sobrando pouco espaço para o ouvido descansar.
Depois que fizer seus mapas, proponha aos professores, funcionários e alunos que façam o mesmo em suas respectivas salas e outros espaços que utilizam com frequência (parque, biblioteca, pátio, refeitório). Esse mapeamento das paisagens sonoras da escola é muito importante para que sejam detectados todos os sons e todas as origens dos mesmos.
Saber de onde vem e como são produzidos os sons é divertido, estimulante e libertador. A liberdade vem no sentido de que todos, juntos, poderão escolher os sons que podem ser modificados (o volume da fala, por exemplo), encontrar soluções práticas para abolir alguns ruídos e para lidar com aqueles que independem das ações da comunidade escolar; os que estão no terceiro círculo, fora da escola (um corredor de ônibus ao lado da escola, por exemplo).
Alguns ajustes demandam reformas estruturais, já quem em muitas escolas não houve um planejamento acústico prévio. Esses ajustes, quando possíveis, devem ser planejados com orientação de um engenheiro acústico e podem ter custo elevado. Porém, muitos deles podem ser feitos de maneira simples, com custo reduzido e resultados eficazes: colocar feltro nos pés das cadeiras e carteiras (ou optar pela compra de móveis com os pés emborrachados),pesos de porta ou pinos para prendê-las quando batem com o vento, trocar aos poucos os ventiladores e outros aparelhos eletrônicos ruidosos por outros mais silenciosos (atentar para essa questão na aquisição de novos aparelhos) e reorganizar os horários ou localização das atividades, caso os sons produzidos por elas prejudiquem o rendimento de outros alunos. Esses são alguns exemplos, mas o mais importante é a mudança de hábitos. Sem que se crie uma “patrulha dos ruídos”, o estímulo ao silêncio deve ser constante, até tornar-se um hábito.
Todos devem habituar-se também a respeitar a fala do outro, sem interrupções e tentativas de sobreposição, com aumento do volume da fala, o famoso “vencer no grito”.
Leve a música para o ambiente escolar. Seja ela em sala de aula, no pátio, ou em outros ambientes, estimule os alunos com sua presença constante. Atente para que sejam oferecidos gêneros e estilos musicais diversos, sempre estimulando a escuta ativa, observando quais os instrumentos são utilizados, como eles dialogam entre si nos arranjos musicais e as diferentes formas de cantar, por exemplo.
E se o momento é da livre expressão, com brincadeiras que estimulam a fala e aqueles gostosos gritinhos infantis, caso a música não tenha conexão com a atividade (seja ela livre ou direcionada) tire-a de cena, para que ela não seja o “ruído da vez”.
Mudar a paisagem sonora do ambiente escolar é um projeto de vida. Deve ser estimulado pela gestão da escola e planejado e realizado por toda a comunidade escolar: direção, alunos, professores, funcionários e pais. Um projeto a ser vivido por todos, desde a educação infantil até o ensino médio. Com o passar dos anos, a escola colherá muitos benefícios, pois todos terão uma relação muito mais prazerosa com o ambiente escolar.
Sugestão de leitura:
SCHAFER, R.Murray.O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991.
SCHAFER, R.Murray.A afinação do mundo. São Paulo: UNESP, 2001.
Denise Venturini, atriz, cantora e educadora musical, está à frente da Cia Vento de Inventar (www.ventodeinventar.com.br), voltada especialmente para a idealização e realização de projetos de música e teatro para o público infanto-juvenil em instituições públicas e privadas. Este trabalho une a expertise como professora de música em diversas escolas, além da atuação como atriz, cantora e preparadora vocal em renomadas companhias. Entusiasta da música como agente transformador, colabora nesta coluna abordando diversos assuntos de interesse da comunidade escolar. Deseja esclarecer alguma dúvida ou sugerir novos temas? Escreva para ventodeinventar@ventodeinventar.com.br