Não gosto muito desta época de festas de fim de ano. Desde bem jovem, sempre me estranhou um pouco essa história de alegria compulsória.Festa é uma palavra muito forte para ser reservada a momentos em que somos quase que obrigados a nos sentirmos felizes. Mas, as comemorações acontecem e não deixo de comparecer (àquelas que me fazem bem), e, na medida do possível, participar do clima. Mais que isso, sinto, às vezes, um desejo meio secreto e solitário de comemorar alguma coisa, algo que seja bom e que me diga que o mundo realmente valeu a pena no ano que passou. Ou que me dê sinais de que as coisas podem caminhar para dias melhores. O problema é que não encontro nas alternativas oferecidas, no Natal e no Ano Novo, nenhuma dessas entidades poderosas e capazes de me fazerem mais feliz ou esperançoso. Porém, num desses momentos de discreto devaneio, pensei em fazer alguma homenagem – aqui, no texto escrito, por que não? – a uma imagem que percorreu meu ano, e, se tudo continuar andando bem, tomará conta dos meus dias pelo tempo que puder viver. O professor!
Não falo especificamente de nenhum professor de carne e osso que conheça. Não me refiro, tampouco, à classe – sofrida – que luta contra todas as forças possíveis para tentar mostrar que o mundo e a vida têm coisas importantes e que vale a pena conhecer o planeta, a sociedade, as linguagens e as ciências que constituímos e que nos trouxeram aonde estamos hoje. Não me refiro ao profissional que acorda cedo e percorre ruas, assentos de ônibus, filas de metrô, trânsitos parados, para tentar fazer com que acadêmico, ético e estético possam dar as mãos e fazer de nossa sociedade algo melhor do que encontramos. Não me refiro a essa figura, cada vez menos valorizada, que acredita no humano e neste deposita suas maiores energias, dia a dia. Falo do professor, num outro sentido. Num sentido etéreo, ou eterno, se preferirem. Bem à forma que se nos apresentam as entidades e o “espírito natalino” – que se usam consumir nos finais de ano. Falo daquele ser que, trilhando epopeias cotidianas, consegue criar vida nova, graças novas, pessoas diferentes e, como diria a queridíssima Gabriela Mistral[1], tenta cumprir a sublime missão que Deus (para quem acredita), ou alguma loucura inexplicável (para nós outros mortais), lhe impôs: “criar o mundo de manhã”.
Falo do herói épico que, ao se desdobrar para que seus alunos o compreendam e o aceitem, consegue, às vezes, fazer algum milagre na cabeça e na vida de um de seus discípulos. Falo daquela imagem que sempre aparece na mente de alguém que seja brilhante ou que tenha se tornado diferenciado, por algum grande feito, em nosso mundo. Aquela lembrança que desperta o vencedor com os dizeres eloquentes: “ah, tudo começou na aula dele”. Aquele portador de frases ou piadas inesquecíveis, que socorrem e impulsionam muitos de nós nos momentos mais inesperados – e até desesperadores. Falo da mensagem de fé, advertência ou questionamento, que nos assalta e acorda na hora em que não queríamos, ou em instantes em que preferíamos nos transformar em autômatos irracionais.
Venho, desde que era aluno de primeira série de grupo escolar, me deparando com essa mística que a vida me apresentou. Aquele personagem – que desdenhamos; muitas vezes, odiamos – que, de repente, nos muda a vida e nos faz descobrir caminhos que talvez ela própria desconheça. É ele meu (ser) professor.
Ontem, falando com um colega muito jovem, porém um dos mais brilhantes professores de Matemática que conheço, ouvi dele uma confissão quase emocionada. Dizia-me que os pais de um dos mais brilhantes alunos da escola em que leciona o procuraram para comunicar-lhe que estavam deixando o colégio por dificuldades financeiras. Porém, não falaram apenas isto. Disseram a ele que seu filho poderia estudar na escola que fosse. Poderia ir para colégios mais “fracos” ou menos rigorosos, que isso não faria a menor diferença. Sabiam que seu futuro estava assegurado como pessoa e profissional. E tudo porque aquele seu professor lhe ensinara que a natureza é linda e saber sobre ela é algo que não tem preço. Disseram que seu mestre o ajudara a amar os desafios e se deliciar com suas conquistas intelectuais. Este já escapara das armadilhas do mundo pequeno e boçal de modas e marcas. E, apesar de não receber nenhuma bolsa ou reconhecimento da escola que estava deixando, saía leve e feliz porque um homem de vinte e poucos anos o ensinara que não há prazer maior do que descobrir a beleza do universo, manuseá-la e utilizar tudo o que se possa retirar da natureza para ajudar a construir realidades menos sofridas – e, se possível, com mais dignidade para as pessoas.
Pois bem, este docente profissional, ainda bem jovem e sem nenhuma força mediúnica a lhe direcionar, já conseguiu ver a imagem à qual me refiro. O professor – a quem presto reverência, aqui – pairou sobre esse mestre que, movido por paixão e esperança, conseguiu ter alegria e emoção com sua profissão. E dar sentido a ela. Enquanto buscamos, noutras vidas, uma razão para esta, podemos estar deixando passar sinais bem mundanos, bem materiais, que podem nos dar algum sopro divino diferente, criador. Por isso, como educador, pai e cidadão, quero fazer festa, agora, para esse meu professor. Louvado seja!
Para terminar, uma história. Fato que aconteceu, semana passada. Uma atual aluna de 1o ano do ensino médio me contou que seu irmão, hoje com 26 anos, disse que minhas aulas foram marcantes para sua vida. Que, sem saber, eu indiquei a ele seu caminho. Que, enquanto assistia minhas aulas de Filosofia e de Matemática, secretamente pensava sobre qual futuro o faria feliz. E perguntei a ela, então, o que faz ele, hoje em dia.
– Doutorado – respondeu- me – na Alemanha. Ele estuda Filosofia da Matemática.
Meu natal e meu ano novo estão garantidos. Bolo, champanhe e peru? Ah, sim. Acho que vão bem. Vamos a eles.
[1] Para quem não sabe, antes que Pablo Neruda fosse Nobel em Literatura, o Chile já tinha esse prêmio, o qual foi arrebatado pela mulher simples e tranquila da cidade de Vicuña, em 1945. Antes de qualquer notoriedade e pompas, foi professora primária em sua cidade natal.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: joao@abcdislexia.com.br ; www.abcdislexia.com.br