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Guia para Gestores de Escolas

Hannah Arendt mostra as consequências do conformismo e massificação

Outro dia, neste espaço, discutindo expectativas e visões que norteiam nosso trabalho de educadores, pensei no filósofo Heráclito e na mudança – tão sentida e tão negada nos currículos e encaminhamentos, em sala de aula ou até em nossas casas. Enquanto a vida explode e muda de cara, continuamos a premiar as assertivas e as certezas absolutas. Hoje, inspirado pelo filme Hannah Arendt, em cartaz em alguns (poucos) cinemas de São Paulo, gostaria de tocar em outro ponto que, se não coincide exatamente com o anterior, também vive enroscado às nossas práticas pedagógicas e educacionais do dia-a-dia. Refiro-me à obediência.

Quem conhece um pouco da história e do pensamento da judia alemã que viveu e floresceu no século XX – e que teve participação intensa como protagonista e pensadora do momento mais violento de nossa história (o nazismo) -, certamente irá identificar seu famoso texto Eichmann em Jerusalém como marco, em termos de sinalização e fonte de reflexão para quem acha que a Educação pode engendrar pessoas melhores e capazes de construir um mundo melhor que este.

Refugiada nos Estados Unidos e já com nacionalidade americana, a professora Johannah Arendt foi indicada, em 1961, para fazer a cobertura jornalística do julgamento do líder nazista Karl Adolf Eichmann, para a revista New Yorker. Seu artigo acabou se transformando em um livro polêmico e muito discutido na época. Hoje, esquecido e aparentemente descontextualizado, vem novamente a baila com o filme de Margarethe von Trotta – o qual recomendo ao leitor, abstendo-me de tecer qualquer comentário crítico, pois minha intenção, aqui, é outra.

Trabalhando há mais de 30 anos na Educação, já me vali muito dos textos de Arendt – e tomei também muita bordoada por causa disso -, principalmente quando era gestor. Via nos projetos da maioria das escolas, todos recheados de ótimas intenções, um contrassenso descomunal com o mundo que vislumbrávamos a partir do nosso papel. E era a brilhante filósofa alemã quem sempre me levava ao púlpito e ao calvário.

Leitura saborosa e importantíssima para quem educa, Hannah Arendt ousou dizer que Eichmann e a maioria dos burocratas nazistas não podem ser classificados simplesmente como pessoas más. Falando em “banalidade do mal”, sugere a reflexão justamente sobre um dos aspectos mais valorizados e perseguidos por nós educadores quando formamos um indivíduo: a eficiência no cumprimento de seu papel.

Segundo ela, o criminoso nazista – condenado com justiça, a meu ver -, ao invés de simplesmente portador de uma maldade intrínseca, era, acima de tudo, homem “sem perplexidades nem questionamentos”. Pessoa simples, não tinha grandes anseios além de poder “agir corretamente”, de ser um “funcionário eficiente”, de ser “aceito e reconhecido dentro da hierarquia”. Não tendo entrado no partido por ideologia, mas por necessidade de colocação profissional, procurou crescer a partir do cumprimento irrestrito de todas as suas funções e deveres. Cumpridor de seu papel dentro da estrutura profissional, era um cidadão que respeitava e vivia absolutamente dentro da lei. Um homem a cultuar, o tempo todo, a lealdade e a submissão. Numa empresa, hoje em dia, talvez fosse chamado de “funcionário padrão” e, numa instituição de educação básica, possivelmente dissessem tratar-se de “aluno fechado com a escola”. Sua ambição profissional o levava a querer melhorar sempre, sem contestar ou criar casos. E, dentro dessa lógica de crescer dentro e com a empresa, procurava fazer sempre mais e mais. Tornou-se, assim, em linguagem atual – dentro dos neo clichês corporativo-pedagógicos -, um “empreendedor”.

Penso que, além de muitos outros alertas que dá para quem é da Educação, Arendt nos mostra, aqui, o fato de que não questionar conduz ao conformismo e à massificação. Indivíduos que se tornam apenas parte da massa dificilmente conseguem criar um sentido propriamente seu para sua vida. Não ser educado para a reflexão é o mesmo que se preparar para obedecer sempre. E não apenas obediência a escolas, empresas ou religiões, mas a modismos, grupos centrados em discriminações ou ao próprio e simples gesto de consumir cegamente. E os efeitos podem ser até mesmo trágicos. Talvez a velha professora de filosofia esteja sinalizando que nossa ação de educadores, entre outras coisas, pode determinar efetivamente – feliz ou tristemente – o mundo que há de vir. Afinal, nossos alunos chegam à escola e apreendem não só as lições formais, mas também as dinâmicas escolar e de mundo.

Há muitas instituições que se afirmam portadoras de reflexão e formação ética. Mas, a experiência me mostra que, em nossa ânsia por acertar, muitas vezes esbarramos no temor de ver nossos projetos desmoronarem. E nessas horas, bom mesmo são os alunos bonzinhos e os obedientes. Pois, como disse sabiamente Hannah Arendt, nosso “sexto sentido, o senso comum”, faz com que nossa vida tenda a se adaptar a um mundo único e dado: o mundo padrão, o mundo que percebemos porque o queremos. Tenho certeza de que muitos de nós já nos deparamos com escolas que “ensinam” a questionar e que, de repente, reprimem fortemente seus alunos quando tal questionamento recai sobre elas. Triste, não?

É difícil ser educador – mais uma vez, esta palavra me dá medo; ainda vou dedicar um texto inteiro a ela. E é muito complicado não nos deixarmos seduzir pelos alunos que nos são fiéis, bebem nossas palavras e nos amam incondicionalmente. E, pior que isso, como é duro não optar por ambientes serenos e pacíficos e ter de encarar a dúvida, o desassossego e o adverso!

Talvez, educar seja, mesmo, exercício de coragem. Coragem de nos depararmos conosco mesmos. Se os líderes nazistas e seus subordinados não tivessem sido leais e competentes,Auschwitz certamente não teria acontecido.

Por Prof. João Luiz Muzinatti*

 
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Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações[email protected] ; www.abcdislexia.com.br 

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