Astronomia, aritmética, geometria, gramática…. A música do mundo!
“Talvez a escola esteja mais para mantenedora de uma sociedade regrada, conformada e acomodada, do que para um movimento de inquietação, estranhamento e ruptura.”
Quando nos damos o direito de apreciar a beleza cósmica, é impossível não nos espantarmos com o encadeamento absurdo entre os fenômenos. A natureza é como uma teia sem começo nem fim, aonde tudo vai e volta, aparece e desaparece, e, apesar da complexidade, os fios parecem enroscar-se sempre da mesma maneira. E fica claro que equilíbrio e beleza não estão distantes ou perdidos no mundo. “A estética nunca se separa da estática”, me dizia um velho mestre, nos tempos de engenharia.
Uma manhã dessas, dialogando com uma aluna de dezesseis anos sobre as propriedades da trigonometria, eis que ela me vem com uma frase solta e perdida na conversa. “A Matemática deveria ter som.”
Isto aconteceu após perceber as “coincidências” entre as formulações em radianos dos chamados arcos congruentes. A garota, que havia reclamado horas antes de não conseguir ver um nexo no que estudava – e que, portanto, só conseguia decorar tudo cegamente -, comemorava, assim, ter “percebido a lógica daquilo tudo”.
Indaguei-a, entre curioso e admirado, sobre o significado daquela frase. “Sei lá”, disse, “as coisas são tão lógicas que poderiam até ter um som bonito”.
Fiquei muito interessado e não deixei a conversa morrer. Perguntei se ela tocava algum instrumento e a resposta foi: teclado e violão. Nesse momento, a conversa saiu do âmbito puramente casual e, de repente, estávamos fazendo incursões conceituais.
A música, expliquei, tem, sim, um pé na Matemática. E aí vieram à tona os pitagóricos – que teriam percebido, há dois mil e seiscentos anos, relações entre as notas musicais e o comprimento da corda de um instrumento da época, o monocórdio. Falei de como teriam se encantado com a descoberta: “o som é Matemática, o mundo é número”. Para eles, ressaltei, saber Matemática era como um caminho supremo de salvação da alma.
Nossa conversa viajou pela história e falei também sobre outra percepção do caráter matemático da música, a qual foi inserida no Quadrivium, um conjunto de quatro artes – astronomia, aritmética, geometria e música – que eram ensinadas na Idade Média. Mostrei que esse grupo de saberes se completava com o Trivium – gramática, retórica e dialética -, que seriam a contrapartida linguística dos sete saberes presentes na formação dos homens livres da época. Em suma, música sempre esteve muito mais perto das “Ciências Exatas” do que ela pensava.
Nossa conversa teve de ser interrompida por causa da necessidade de seguirmos com os conteúdos escolares, mas percebi que uma grande satisfação, até maior do que a de ter conseguido entender trigonometria, havia surgido nela. Era como se houvesse, de alguma maneira, participado do pensamento humano, extrapolando o tempo, e apreendendo um pouco do logos do mundo. E creio que estava certa, pois sua intuição fora precisa. Era como se, perdida em alguma sala do século XX, retornasse no tempo e se unisse às cabeças que, contemplando a estética universal, puderam perceber uma dinâmica além do imediatamente perceptível. Aquele momento mágico não possuía, portanto, cronologia, pois pertencia à essência humana. Era, assim, algo eterno. Por uma fração de segundo, ela saíra do mundo das coisas mutáveis e corruptíveis para mergulhar no absoluto. De certa forma, aquele pequeno escritório se juntava à academia platônica, num raro turbilhão de beleza.
À saída, parecia sentir-se mais confiante do que quando chegara. Sentia-se melhor e mais senhora de si, pois provara a si mesma que também era capaz de empreender aquela fantástica realização chamada conhecimento. E, mais que tudo, percebera que esse conhecimento não pode ser compulsório nem mecanizado. Era algo sublime, completamente acessível, porém somente a quem se deixasse levar por sua leveza e seu emaranhado lógico e linguístico.
Depois que ela se foi, sozinho, não podia deixar de pensar em mais aquele salto que presenciara em minha jornada de professor. Em meio a muitas aulas, preparações, provas, correções de trabalhos e muita preocupação em cumprir meu papel de educador – confesso ter um pouco de medo desta palavra -, é certo que já vivi uns tantos momentos de êxtase como este. Mas, não são algo comum, no meu dia a dia. Não creio que o sejam na vida da maioria dos professores. E por quê? Talvez a escola esteja mais para mantenedora de uma sociedade regrada, conformada e acomodada, do que para um movimento de inquietação, estranhamento e ruptura.
Momentos como esses, de mergulho no logos, de experiência de eternidade, só podem mesmo surgir quando o indivíduo abandona as cadeias dos nexos socioeconômicos que construímos – e dos quais nos orgulhamos tanto – para viajar ao humano de fato. Para experimentar um pouco do que os tais pitagóricos chamariam de purificação da alma.
Ao sair dali, enquanto ia para casa, não pude deixar de imaginar a menina andando por um jardim, ao lado de um filósofo antigo qualquer, dizendo sentir que o mundo tem ainda muitos segredos a serem desvelados.
Por Prof. João Luiz Muzinatti*
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: [email protected] ; www.abcdislexia.com.br