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Guia para Gestores de Escolas

Bullying Alimentar: o preconceito invisível que adoece nossas crianças

Gestor, talvez você não veja, mas existe um tipo de violência silenciosa em sua escola: o bullying alimentar. Costuma ser associado apenas à obesidade, mas a verdade é que atinge muitas outras crianças

Sou nutricionista há mais de 25 anos, com atuação em distúrbios alimentares pediátricos, obesidade, alergias, hipersensibilidades, neurodivergências, entre outras comorbidades. Ao longo desse tempo, tenho acompanhado histórias que me chocam, não só pela crueldade das situações, mas pelo impacto direto na saúde física e emocional dos pequenos.

Começo com um garoto que decidiu mudar sua alimentação para melhorar o desempenho no esporte, após um desmaio em quadra. Animado, começou a levar lanches naturais com proteína, hortaliças e frutas. Estava feliz, cheio de energia, e até se destacou como “cestinha” em uma competição. Mas em poucas semanas os comentários começaram: “quem coloca alface no lanche?”, “fruta é coisa de frutinha”. O que começou como brincadeira virou exclusão. Um dia, levou um salgadinho de pacote — mais “aceitável” aos colegas — e, de repente, foi reintegrado ao grupo. O recado foi cruel: o lanche saudável o afastava, o ultraprocessado o fazia pertencer.

Outro caso é de uma paciente com obesidade severa e resistência insulínica. Para adequar sua alimentação, sugeri levar tomates-cereja e palitinhos de cenoura, já que ainda não gostava de frutas, que ela adorou. Semanas depois, a mãe me escreveu: a melhor amiga havia dado um ultimato — ou ela abandonava o “lanche esquisito” ou perderia a amizade. Diante da chantagem emocional, desistiu de levar os legumes, mesmo gostando deles.

Poderia contar ainda de um menino com dermatite severa que precisava excluir leite e glúten. Empolgado com a melhora dos sintomas, levava opções alternativas para a escola. Logo veio a exclusão: “esquisito”, “fresco”. A pressão foi tanta que ele desanimou do tratamento.

Esses casos revelam uma realidade dura: crianças que tentam se cuidar, por orientação de profissionais ou escolha própria, são ridicularizadas. Comer fruta, levar legume, respeitar uma restrição alimentar ou até buscar uma opção mais nutritiva virou motivo de piada. Se para nós, adultos, comer salada é sinônimo de regime, imagine para os pequenos.

Quando olho para trás, lembro da minha infância: subir em árvores, comer frutas do quintal, dividir descobertas simples com amigos. Hoje, o que vem da natureza é motivo de estranheza, e o que está no pacote é sinônimo de status e aceitação. Como chegamos até aqui?

Parte da resposta está no marketing. Indústrias investem bilhões em embalagens coloridas, aromas artificiais e personagens de heróis para vender alimentos ultraprocessados. São fórmulas hiperpalatáveis que conquistam o cérebro infantil. Ao mesmo tempo, frutas e verduras não têm propaganda, jingles ou mascotes. O resultado? Um ambiente que legitima o consumo do que mais adoece. Sem contar a praticidade diante de uma vida corrida.

A ciência já aponta as consequências. A epigenética mostra que nosso ambiente — inclusive o novo padrão alimentar — modula a expressão dos genes, influenciando risco de doenças futuras. O último Atlas da Obesidade alerta: se nada for feito, até 2035 metade das crianças brasileiras estarão com sobrepeso ou obesidade, elevando drasticamente as doenças crônicas e a mortalidade precoce. Somem-se a isso o aumento das alergias e o crescimento da neurodiversidade. Ignorar o bullying alimentar é comprometer não apenas o presente, mas o futuro da saúde pública.

E aqui entra a escola. Que aluno queremos em sala de aula? Uma criança que esconde a fruta para não ser alvo de piada? Que troca os legumes por ultraprocessados só para não perder um amigo? Que tem dificuldade de foco e cognição porque não pode seguir seu plano alimentar?

A escola é espaço formador de verdades. O que o professor fala, o que o colega reforça, torna-se referência para a criança. Se deixarmos que redes sociais e propagandas definam o que é “normal” comer, perderemos a chance de criar uma geração que entenda o real valor dos alimentos.

Assim como já lutamos contra outras formas de bullying, precisamos lutar contra esse novo padrão alimentar que tem levado ao bullying alimentar, que pode ser a semente de um distúrbio alimentar, de uma desistência de tratamento ou de uma vida adulta com mais doenças.

Ainda há tempo. Pequenas atitudes — acolher, respeitar, educar sem estigmatizar — podem transformar esse cenário. Precisamos criar novas verdades: que fruta não é motivo de vergonha, que restrição alimentar é cuidado, que comida de verdade é liberdade. Podemos agir ao invés de assistir!

Triste, mas real: o bullying alimentar está entre nós, silencioso. Só com consciência e ação poderemos devolver ao alimento seu valor sagrado — e às nossas crianças, o direito e o desejo de crescer saudáveis.

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