Como estimular práticas antirracistas no cotidiano escolar?
O mês de novembro é comumente atrelado às discussões sobre raça e racismo, bem como as suas ressonâncias em âmbitos culturais, históricos e de experiências pessoais. Especialmente no dia 20 de novembro, marcado pelo Dia da Consciência Negra, percebemos o surgimento de discussões em diversos setores, inclusive na educação, que abarcam contextos históricos, diversidade cultural, heranças culturais africanas, assim como a realidade de pessoas negras em nosso país.
Na escola, compreendida como um potente espaço para diálogos e compartilhamentos, inserir reflexões e ações que envolvam (não só) a percepção do racismo, como também práticas antirracistas, são demandas necessárias – e urgentes. Nesse sentido, é possível, no contexto escolar, abordar as múltiplas diferenças que constituem todos os estudantes, além de propor pesquisas sobre as culturas africana e afro-brasileira, e a problematização de uma visão única de mundo tendo como eixo ou ponto de partida uma visão colonial e eurocentrada. Incluir essas reflexões tão relevantes no cotidiano de escolas públicas e particulares, não apenas no mês de novembro (ou especificamente no Dia da Consciência Negra) como em todo o período letivo, estimula uma pluralidade em todas as características que atravessam os sujeitos, reforçando, assim, experiências significativas com as diferenças.
PRÁTICAS ANTIRRACISTAS
Nossa sociedade é estruturalmente racista. Linguagens, expressões, acessos, relações e violências simbólicas perpassam a realidade brasileira em diversas esferas e dimensões seguindo e perpetuando o padrão privilegiado de pessoas brancas em detrimento do apagamento e silenciamento de culturas e diversidades de pessoas negras. Nesse sentido, se seguirmos a fala da filósofa e ativista estadunidense Angela Davis quando, em certo momento, ela disse que “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, como podemos estimular ações e práticas antirracistas no cotidiano escolar? A partir desta inquietação, trouxemos abaixo algumas falas de docentes e de profissionais que atuam no âmbito educacional, refletindo sobre as possibilidades de práticas antirracistas nas escolas.
“O caminho mais importante tem três pilares: convivência – estudo – ações reparadoras. Por convívio, entende-se ampliar a convivência entre alunos(as) negros(as) e não-negros(as). Mas esta convivência deve ser mediada pelo estudo sobre o que é o racismo e como podemos combatê-lo. Para estudá-lo, precisamos ir além do Brasil colônia; precisamos estudar a África antes da chegada do europeu; precisamos levar a público aquela África rica em cultura, tecnologia e bens materiais que existiu e que ainda existe. Assim, podemos desenvolver ações reparadoras, com o intuito de levar o negro a lugares que lhes foram negados, mas que ele ajudou a construir com sua mão de obra e conhecimento, como por exemplo, escolas de ponta e postos de trabalho especializados (professores em escolas particulares, por exemplo). Agindo concomitantemente nestas frentes, podemos combater a visão simplista, errônea e preconceituosa que se tem da África e de quem de lá descende. Tem coisas que só a convivência sadia faz…”
Mildred Sotero – Professora e mãe atuante na Comissão Antirracista da Escola Gracinha (Nossa Senhora das Graças)
“O reconhecimento do racismo como elemento estruturante da sociedade brasileira é essencial à construção de uma lógica educativa equânime. Para tal, na escola, é essencial que docentes e discentes olhem-se e vejam cores e histórias, entendendo como, em nosso país, trajetórias são construídas e atravessadas por preconceitos raciais pautados em percepções fenotípicas. Olhar o lugar social historicamente constituído de cada sujeito no cotidiano escolar é importante, pois é um modo de se compreender e discutir ações, reações, sentimentos, assim como um caminho à construção de políticas de equidade racial.”
Dayse Mara Ramos da Silva – Professora de Literatura e coordenadora da Comissão antirracista do Instituto Singularidades
“Cultura e história afro-brasileira na sala de aula: em 2003, a Lei 10.639 tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas públicas e particulares de Ensino Fundamental e Médio do país — em 2008, a lei 11.645 acrescentou a agenda indígena. Dessa forma, garantir a aplicação da lei é fornecer a todos, desde a infância, o acesso a valores éticos que possibilitam criar uma relação de respeito ao próximo, às diversidades e às diferenças. A escola é um lugar de construção não só de conhecimentos, mas também de identidades, valores e afetos.
Trabalhar a cultura brasileira, afro-brasileira, africana e indígena nas escolas é importante para que uma nova versão da história seja contada. Essa abordagem permite que nossas referências dentro da sala de aula se ampliem, que os estudantes negros entendam que somos muito capazes de grandes feitos e que os não-negros tenham ciência dessas capacidades e se relacionem com o corpo afrodescendente para além daquele que os serve.”
Juliana Bueno – Professora de cultura afro-brasileira da Camino School
“É preciso estudar de forma multidisciplinar e contínua a cultura afro-brasileira desvinculada da visão escravista, pois enquanto tivermos uma leitura apenas eurocentrada do processo de colonização do Brasil estaremos perpetuando ideais racistas e um Brasil irreal. Mostras culturais são dinâmicas, são didáticas e trazem bons resultados. A realização de rodas de conversas é bastante eficaz para promover a desconstrução e a inutilização, desde a Educação Infantil, de termos e expressões racistas estruturadas na sociedade e enraizados na linguagem e no nosso cotidiano.”
Professora Dora Silva – E.E. Antonio Manoel Alves de Lima, DE-Sul2
“Nós nunca tivemos qualquer problema relacionado ao racismo ou à diversidade. Mesmo assim, temos uma preocupação em discutir assuntos relacionados a essas pautas a fim de promover a conscientização dos alunos a respeito desses temas. Além disso, convidamos professores negros e da comunidade LGBTQIA+ para que tratem de tópicos para além das pautas identitárias próprias. A ideia é desconstruir a percepção de que representantes de grupos minoritários só sabem falar sobre suas próprias pautas. Não mesmo! Todos somos capazes de abordar assuntos diversos. Em geral, nossos alunos são receptivos às nossas propostas, que fomentam a inclusão social e a diminuição da desigualdade social. Além disso, o curso Escreva possui parcerias com dois projetos sociais: Portela Cidadania e o PECEP. Ambos são pré-vestibulares que assistem estudantes de menor poder aquisitivo, de modo que nós possibilitamos o trabalho de qualidade a esses alunos.”
Elaine Antunes – Professora de Língua Portuguesa, especialista em redação há 20 anos e idealizadora do curso Escreva, especializado no preparatório de redação para vestibular
“A Faculdade Impacta, como uma faculdade de tecnologia num país tão desigual quanto o Brasil, tem um papel preponderante para diminuir as distâncias na sociedade. Nós temos no nosso grupo diversos alunos negros, alunos que moram em comunidades, alunos que vem de família simples, humildes, mas que encontram aqui, na Faculdade Impacta, o caminho de saída da situação social atual através de uma formação intelectual e técnica que o capacita para o mercado de trabalho na nova economia digital.
Uma das grandes ações que a Faculdade Impacta tem feito para a inclusão dos negros, não só na faculdade, mas também no mercado de trabalho através dos seus cursos, é o programa Impactando Vidas, que possibilita ao jovem negro que mora em comunidades acessar a faculdade em cursos de ponta e com alta demanda de mercado, sem a necessidade de pagar o primeiro ano do curso e com uma garantia de um estágio até o final do primeiro ano. Com isso, a Faculdade Impacta tem contribuído muito para a inclusão desses jovens na sociedade e para a ascensão dessas famílias numa classe social mais elevada.”
Professor Renato Souza-Santos – Coordenador de Cursos da Impacta
“Pensar e efetivar ações e práticas antirracistas são fundamentais para construirmos espaços mais saudáveis, acolhedores e que possibilitem uma transformação para a sociedade. Talvez a primeira iniciativa seja não nos limitarmos às datas comemorativas. Extrapolar o mês da consciência negra quando pensamos nesse momento de planejamento para o próximo ano é bem importante. Nesse sentido, buscar referências que positivem a história negra, que falem sobre as diásporas africanas, trazendo personalidades que impactaram a nossa sociedade é um bom caminho.
Outra ação é entender a proporcionalidade dos ambientes que circulamos. O Brasil é um país de maioria autodeclarada negra, qual é a realidade de cada escola? Incluir ciclos de debates e de formação sobre desigualdade, racismo e preconceito para toda a comunidade escolar, privilegiando o respeito, é um excelente começo para uma escola que busca afirmar práticas antirracistas. No LIV entendemos que o contato com a diversidade, num ambiente acolhedor, possibilita o desenvolvimento da empatia, do respeito, da compreensão de si, do outro e do mundo.”
Juliana Hampshire – Psicóloga e consultora pedagógica do LIV
“Em primeiro lugar, é preciso destacar que as práticas antirracistas no cotidiano escolar devem estar presentes em todas as escolas, considerando as leis 10.639 e 11.645 que torna obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira, e o ensino de história e cultura indígena. Logo, não se trata de opção, e sim de cumprimento à legislação. Por outro lado, para que essas práticas se materializem é necessário investir fortemente na formação de professores e professoras, para que possam compreender o quanto os conhecimentos postos em ação na escola estão alicerçados num padrão eurocêntrico, bem como atendem todo um imaginário deturpado da população negra e indígena baseada em estereótipos que reforçam negativamente suas identidades. Tal processo invisibiliza outras epistemologias que contribuíram significativamente para a construção da sociedade brasileira. Nesta esteira, descolonizar o currículo e os saberes eleitos como passíveis de serem ensinados para uma perspectiva africana, afro-brasileira e indígena, significa também retomar nossa história e nossas heranças de forma crítica e contextualizada. A exemplo do trabalho com a etnomatemática, que além de transcender o princípio da matemática única e técnica, investe na cultura, na questão racial, na afetividade e nos saberes de diferentes contextos socioculturais. Essa é uma, entre muitas possibilidades; por isso, a formação continuada que trate dessas pautas por uma cosmovisão africana e afro-brasileira é fundamental!”
Tássio José da Silva – Doutorando em Educação e assessor pedagógico da
Escola Tarsila do Amaral
“Esse é um tema de suma importância, pois combater o racismo é lei, conforme previsto na Lei de Diretrizes e Bases (LDB), na Constituição e no Plano Nacional de Educação (PNE). Para que sejam efetivas, as ações e práticas antirracistas não devem ser pontuais e isoladas, mas parte de todo um contexto educacional antirracista em todas as dimensões de uma escola, como currículo, avaliação, formação, gestão democrática, atendimento, materiais didáticos e rotina escolar.
Em primeiro lugar, para promover uma educação antirracista é preciso reconhecer que o racismo existe na escola, pois o ambiente escolar não é um espaço imune e segmentado da sociedade. A partir deste reconhecimento, é importante que gestores e educadores aprofundem reflexões sobre o assunto e abram um espaço de diálogo constante com a comunidade educativa (incluindo alunos, famílias e pedagogos), para que possam compreender os maiores desafios e, juntos, criar um plano de ação efetivo de superação, com intervenções interdisciplinares e preventivas.
No mês de novembro, por conta do dia 20, é muito comum as escolas abordarem o racismo. Porém, essa data não deve ser só comemorada neste feriado, mas construída ao longo de todo cotidiano de cada ano letivo. Afinal, munição mais efetiva contra o racismo é, ou deveria ser, a educação.”
Alessandra Cieri – Psicóloga clínica
LÁPIS “COR DE PELE”?
A partir da leitura do livro “Lápis cor de pele”, de Daniela de Brito, uma turma da Educação Infantil do Colégio Marista Glória, localizado na região central de São Paulo, começaram a se observar e levantar o questionamento sobre a questão racial, sobretudo através de uma atividade em que percorriam os espaços do colégio e questionavam as pessoas se existia “esse tal lápis ‘cor de pele’”. Na obra, que se passa em uma escola, uma menina pede emprestado um lápis “cor de pele”, e o colega lhe dá um lápis cor de rosa. Intrigada, ela compara essa cor com a de seu braço e também percebe a cor diferente de seu irmão. Em casa, seus pais explicam de onde vem essa diversidade de cores, lição que ela repete na escola.
De acordo com a professora da turma e responsável pela atividade, Aline Lemos de Lima Gomes, ao realizarem a pesquisa, as crianças perceberam que várias pessoas também tinham a mesma dúvida. “As crianças perceberam que, independentemente do sim ou do não, o que importava era a justificativa que cada pessoa dava para sua resposta”, explica. “Eles perceberam as diferenças entre as pessoas e notaram que o mais interessante estava justamente em cada um ter sua própria característica”, complementa.
Com a lição, os alunos puderam observar suas características mais marcantes em um espelho. O exercício de autorreconhecimento os fez escolher a cor que mais se aproximava de seus tons de pele. “Cada pessoa tem um tom de pele diferente, uns mais claros, outros mais escuros. Então, não existe só um lápis cor de pele. São vários lápis cor de pele”, afirmou a aluna Maria Helena Sampaio Fenelon. “Esse projeto de investigação gerou uma empatia muito grande com o próximo e uma percepção simples, mas muito importante: ninguém é igual. Cada pessoa é única, com seu jeito e suas características”, finaliza a professora Aline.