De encontros e exílios
Há trinta anos, iniciei um novo rumo em minha vida. Eu que sempre estudei com vontade, fazendo da escola minha prioridade maior, num belo momento decidi que queria aprender. Sim! Estudante desde os seis anos de idade, quando comemorava minha primeira formação – de engenheiro – descobri que sabia pouquíssimo das coisas que me interessavam e resolvi que começaria a estudar. A universidade me ensinara muito sobre aspectos técnicos e específicos da realidade – no meu caso, acerca de mecânica, máquinas e até sobre economia – e me privara completamente de pensar sobre o humano, as relações políticas entre as pessoas e até mesmo sobre minha própria língua. Quando a ficha caiu, senti uma mistura de tristeza pelo longo tempo desperdiçado e desejo incontido de descobrir aquilo que me ficou escondido até então. Iniciei, ali, o processo mais longo de minha vida, o qual não desejo que acabe enquanto estiver vivo. Porém, dadas as contingências da vida, tenho cá minhas inquietações. Por que teve de ser assim? E mais: qual será o meu limite?
Pode parecer absurdo, mas sempre figurei entre os primeiros alunos da classe, enquanto cursava o que chamamos, hoje, “educação básica”. Matemática, Língua Portuguesa, Ciências (todas elas), História, Geografia . . . Era daqueles alunos que viviam brigando para manter seu boletim completamente forrado de notas altíssimas. As notas 6,5 ou 7,0 que (raramente) aconteciam, faziam com que redobrasse meu empenho a fim de que pudesse compensar no bimestre seguinte com uma nota 9,0 ou 10,0. E, via de regra, conseguia. Tinha a sensação de que aprendia muito e, com 17 anos de idade, já me considerava alguém diferenciado, com conhecimento. Ao ingressar na universidade, pensei que seria o momento de coroar aquela trajetória. Era chegada a hora de falar com autoridade sobre muita coisa. E me deparei com o mundo. Que decepção!
Foi triste perceber, aos poucos, que me enganara completamente. Naqueles anos todos, aprendera, sim, mas não sobre o mundo, a vida ou as pessoas. Apesar das notas belíssimas em todas as áreas do conhecimento, o meu aprendizado fora completamente direcionado para cumprir minha vida escolar. Em outras palavras, usara todos os meus recursos para aprender a vencer e me destacar na escola. Aprendi como fazer para sair da escola. Ponto!
Quando a vida profissional e a convivência social exigiram que me posicionasse, que opinasse e que decidisse sobre os vários caminhos da realidade, entendi que meu repertório era paupérrimo e que ignorava por que o mundo em que vivia era do jeito que era. Poderia – como percebi muitos de meus amigos fazerem – me acomodar às regras da sociedade e tratar de ganhar dinheiro, adquirir coisas da moda, comprar o carro que me daria status de vencedor, entrar na dança, enfim. Mas algo me doía. E todo aquele empenho dos anos de estudante? E as horas sem dormir, os domingos que passei estudando? Tudo aquilo só me servira mesmo para passar de ano e sair da escola? E, agora, seria entrar na roda viva e girar? Sinceramente, até que tentei, mas não consegui.
Logo no primeiro ano depois de formado, comecei a me interessar pela História – minha, do meu país, do mundo. E foi incrível constatar que muito do que “aprendera” na escola não passava de escritos memorizados e respostas desenvolvidas para passar nas provas. Em História (e também em Geografia, havia decorado parágrafos inteiros, que me serviram para resolver questões de provas e me garantiram várias notas altas. Anos mais tarde, entendendo um pouco sobre os mesmos temas, lembrava-me dos textos e eles passavam, aí sim, a fazer algum sentido. Até mesmo em Matemática e Física, decorei procedimentos que me permitiram resolver certos tipos de problemas e, até mesmo, saber como me sair de situações novas. Mas, sinceramente, não tinha a menor ideia dos conceitos e porquês que sustentavam aquelas estratégias de cálculos. E foi somente quando me bateu uma certa ira em relação ao conhecimento, que passei a querer resgatar o tempo perdido.
Nesse momento, virei um rato de livrarias e bibliotecas – vale frisar que não havia ainda Google. Lia tudo o que me passasse pelas mãos. Mesmo trabalhando o dia todo como engenheiro, arranjei tempo para estudar Matemática e Filosofia – inclusive enfrentando novo vestibular e voltando aos bancos das salas de aula como aluno. Aprendi, finalmente, o que significa a palavra estudar. E, mais que isso, comecei a associar aquilo que descobria e aprendia com o mundo que se descortinava ao meu redor. Acabei percebendo que havia um sentido nessa brincadeira de estudar e aprender. O colégio ficara para trás e, apesar de a universidade ainda me cobrar performance e notas, aprendia porque queria e, principalmente, porque via beleza e graça nas coisas. Com certeza, estudei mais nos dois primeiros anos da nova vida do que o fizera em onze anos de Educação Básica – isto porque não tive pré-escola. E, para que o sentido se definisse de fato ainda faltava uma coisa. Já tinha também a profissão de professor, e seria uma questão de honra ajudar meus novos alunos a construir seu próprio sentido – e não precisar esperar tardiamente pelo momento da angústia de se saber ignorante.
E comecei a ensinar de maneira bem diferente do que experimentara, anos antes, como aluno. Criava, debatia, duvidava e varava os dias e as noites revirando as questões com que meus alunos me brindavam. E o negócio começou a funcionar. Alunos começavam a me abordar com perguntas novas, algumas muito interessantes e para as quais não tinha respostas prontas. E aprendia junto com eles. Abandonei a profissão de engenheiro e declarei que minha vida seria ajudar as pessoas a estabelecerem vínculo e criar sentido no aprender. Sentia-me realizado. Mas, minha alegria tinha os dias contados.
Em célebre pronunciamento de um pai de aluno, o qual foi justificado posteriormente pela instituição, fiquei sabendo que subvertera a “verdadeira razão de ser da escola” – nesta época, trabalhava numa escola particular. Seu filho estava ali, dizia ele, para se preparar para a carreira acadêmica e o mundo profissional. Isto significava que meu trabalho deveria ser o de capacitá-lo para o vestibular. Além do quê, a família não o colocara naquela escola para ser, ela própria, questionada por ele. E, obviamente, quando o aluno deve se empenhar em acertar o máximo possível nas provas ou na vida – ou, mais precisamente, aprender a dar respostas certas -, o professor que o prepara para criar questionamentos está completamente na contramão. A vida prática requer certezas. Os vitoriosos de nosso mundo são aqueles que “sabem das coisas”. Moral da história: deveria voltar a “ser professor”, pois não estava – daquela forma – preparando meus alunos para a “realidade de seu mundo”. Porque “ninguém aprende com quem não sabe”. E meu leque de escolhas ficou reduzido. E, pior, minha argumentação não encontrava termos de conversação no outro lado. Conclusão: pé na estrada. “Os incomodados que se mudem”, não é isso?
Então, segui meu caminho. Deixei de atrapalhar aqueles que confiaram em mim e me deram, um dia, a oportunidade de ensinar. Afinal, o justo é que sejam apoiados por quem comunga de fato com suas ideias. Ali não era o meu lugar. E aqui estou, falando, escrevendo, pensando. E, de quebra, ensinando no paralelo aqueles que não conseguem se adaptar à escola real. Sem a pretensão de encontrar porto ou moradia limpa e quentinha, vou andando. Livre e solitariamente! E bem sei que há outros solitários, cada um tratando de inventar seu rumo. Todos exilados da grande festa do conhecimento canonizado. Mas não desisto de minha ânsia de entender esse nosso mundo.
Hoje, sinto que minhas inquietações iniciais ficaram resolvidas. Tudo aconteceu assim porque, num mundo de certezas e respostas corretas, somente os solitários conseguem espaço para duvidar. E meu limite? Bem, talvez esteja justamente na fronteira que separa o sonho de emancipação humana do mundo dito útil e real no qual as coisas acontecem.
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: [email protected] ; www.abcdislexia.com.br