A família na escola: da “querela das responsabilidades” ao “princípio responsabilidade”¹
Entra ano, sai ano, e a querela das responsabilidades entre família e escola reaparece. Quem primeiro situou o problema como uma consequência da modernidade foi o filósofo alemão Max Horkheimer. Em seu texto “Autoridade e Família”, de 1936, descreveu a importância do pai como portador dos valores provenientes do passado e responsável pela transmissão da tradição aos filhos. Na passagem do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista, este pai teria sido destituído dessa posição na medida em que se tornara um assalariado. Nessa passagem, suas funções simbólicas teriam sido comprometidas, pois, de representante de uma tradição, teria passado a sustentar sua autoridade como provedor de salário. Assim, desprovida de suas funções simbólicas, e desorientada quanto a como proceder na criação dos filhos, a família teria passado a delegar essa responsabilidade a terceiros, como a escola e os especialistas. Dessa forma, o que antes era atributo da autoridade paterna, se deslocara para o discurso do pedagogo e do médico, identificados como portadores do saber sobre a criança. O discurso do especialista entrou no lugar do discurso do pai.
Desde então, à escola passou a ser atribuída a responsabilidade pela formação das crianças. A fisólofa alemã Hanna Arendt analisou o impacto desse fenômeno na educação, tomando como referência uma corrente predominante na psicologia norte-americana dos anos 1950, que pensava o mundo da infância como uma esfera autônoma e intocável, e a criança deveria desfrutar de plena liberdade, sem intervensões repressivas, o que levou a autora a concluir que os adultos teriam se recusado “a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças”. Essa ausência de responsabilidade teria se tornado um denominador comum no pensamento e nas ações de pais e professores (Hanna Arendt, “A Crise na Educação”, p. 240).
No final dos anos 1950, o herdeiro da tradição filosófica inaugurada por Max Horkheimer apostou na possibilidade de uma sociedade não repressiva. Para ele, o desenvolvimento tecnológico poderia finalmente emancipar o homem do trabalho alienado, de sorte que as morais rígidas do passado perderiam sua razão de ser. Consequentemente, as proibições que marcavam a consciência infeliz das pessoas dariam lugar a um mundo regido pelo prazer. Ora, os costumes, de fato, sofreram uma liberalização, porém, Marcuse não contava que o próprio discurso da libertação passaria a dominar o sujeito. Foi o que ocorreu, e não demorou para que o capitalismo encontrasse nesse discurso uma extraordinária oportunidade de expansão, transformando as pessoas em consumidoras de objetos de desejo perecíveis, de emoções baratas e coisas provisórias.
A geração que cresceu alimentada pela crença de que a liberação iria suprimir a infelicidade se confronta agora com problemas para os quais não encontra explicação. A ideia de que tudo é permitido e de que tudo é possível acaba por instalar no sujeito um dilema nas formas de se relacionar com seu desejo, pois o desejo é uma escolha, e escolher é excluir. Em suma, não há desejo sem perda, e a experiência da perda é incompatível com o ideal de uma existência completa de felicidade.
Nas escolas, muitos alunos perdem tempo porque não conseguem se decidir – porque nada querem perder -, o que leva alguns a enveredarem pelos caminhos destrutivos do fracasso escolar, da agressividade inusitada, das drogas. Mas a experiência de se educar não implica apenas o aprendizado da decisão. Ela também provoca frustração e angústia. Nesse sentido, é um problema quando a escola não suporta a frustração de um aluno. Do mesmo modo, é um problema quando a escola organiza seus esquemas de aprendizagem em modelos do passado, pois esses modelos não são mais capazes de tocar as novas gerações. A educação precisa se orientar no sentido de uma implicação dos alunos nas consequências de suas ações, no reconhecimento de seu desejo, na implicação subjetiva de suas escolhas e, enfim, na responsabilidade necessária à produção de um conhecimento novo.
1 O “princípio responsabilidade” atua no fundamento de uma ética para a civilização tecnológica e foi desenvolvido pelo filósofo Hans Jonas. Partindo do diagnóstico de que a técnica moderna redimensionou a ação humana, procura estabelecer como dever a conservação do mundo e da vida.
Por Rodrigo Abrantes da Silva*
*Rodrigo Abrantes da Silva é historiador e professor. Especializou-se em História Contemporânea pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), e atuou como pesquisador do Projeto Análise e do Núcleo de Pesquisas de Psicanálise e Educação (NUPPE) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Edita ainda o blog www.aulaplugada.com.
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