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Guia para Gestores de Escolas

Matemática: um saber importante! Será mesmo?

Sala de aula! Matemática: alunos e professores lutando para que conteúdos e procedimentos ensinados possam ser incorporados. Imensas listas de exercícios. As infindáveis aulas de reforço, aulas particulares. Reuniões entre coordenações e famílias; professores e coordenações; alunos, professores, escola, famílias . . . No final de cada ano, sempre a mesma coisa: alguns poucos alunos excelentes, uma enorme quantidade com notas suficientes para aprovação dentro da média, um número expressivo passando “na bacia das almas” (alguns por conselho) e vários reprovados. Luta imensa! Inglória, por certo. Por todos os lados, as pessoas tentando entender por que a Matemática parece ser “tão complicada”. Vai ano, vem ano, e tudo parece se repetir. Técnicas novas de aulas, cursos com mestres garantindo que, “com eles, a coisa funciona”, kumon, psicopedagogas . . . Mas, o que podemos verificar é uma frustração sempre maior a cada ano que passa. Por que isso? Ninguém nega a importância dos saberes matemáticos: todos elogiam os “crânios” que vão bem em Matemática, os medalhistas de olimpíadas são homenageados, os alunos brilhantes são a menina dos olhos do professor . . . Sem dúvida, algo muito grave deve estar acontecendo, e não conseguimos detectar. Aqui, vai mais uma questão. Não para complicar, mas para tentar, através dela, quem sabe, abrir novos caminhos de investigação. Afinal, como está não dá para continuar.

Outro dia, ao falar com uma sala inteira de alunos de 7º ano – uma das melhores turmas que já encontrei -, acabei desabafando. Ao ser informado de que muitos alunos não realizavam as atividades de casa, procurei saber o motivo. As respostas foram muito parecidas – e o pior: sinceras. Diziam que olhavam o desafio proposto pelo professor e, vendo que não sabiam, fechavam os cadernos a fim de esperar a resolução na aula seguinte. Afinal, o professor sempre pedia para fazerem “exercícios diferentes dos que já fizera em sala”. “O professor não nos dá exercícios para praticarmos; manda sempre desafios”. Então, “não sabemos fazer”. Isso me deixou entre desanimado e desapontado. Mas, não perdi a fé. Primeiro, um desabafo, depois, uma reflexão.

“Pessoal, sinto dizer: vocês não estão fazendo matemática! Aliás, muitos de vocês jamais cursaram Matemática nestes anos todos: vocês brincam de Teatro”. Ao ver tantos bons alunos com caras de perplexos, respirei fundo e voltei ao normal. Mas, creio que minha reação inesperada e radical os tenha preparado para o que diria em seguida.

“Vocês não estão percebendo uma coisa muito importante. Cada vez que o professor lhes manda um desafio, está dando a vocês a oportunidade de praticarem matemática. O que vocês fazem todos os dias passa longe do que os matemáticos têm feito nestes últimos três mil anos. Ao levarem um problema destes para casa, igualam-se aos maiores nomes da matemática da história”. Os olhares eram cada vez de maior perplexidade. “De que diabos este sujeito está falando?” E, apesar do sentimento de pesar perante expressões tão confusas – afinal, tratava-se, sem dúvida, de um grupo muito bom -, não perdi a oportunidade de lhes lançar questões novas. Sei que o último desafio foi que deduzissem, a partir de seus próprios conhecimentos, a fórmula da área do trapézio. E sabem de uma coisa? Quando ficaram frente a frente com o desafio, estavam em igualdade de condições com o matemático que trouxe tal fórmula para a humanidade: ele também não sabia fazer!”

“Talvez nunca houvessem pensado nisto, mas as pessoas que criaram teoremas, desvendaram velhos paradoxos, criaram fórmulas matemáticas ou coisas do gênero, quando iniciaram seu trabalho, não sabiam para onde este os levaria. E usaram de matemática para chegar aos resultados”. Neste momento, falei-lhes sobre a origem etimológica da palavra matemática. Expliquei que a mesma vem do termo grego Mathema, que pode ser traduzido como “aprendizagem”, “explicação”, ou “caminho para se compreender”. E que fazer matemática seria muito mais do que memorizar procedimentos e técnicas, a fim de aplica-los sempre que certas situações aparecessem. Expliquei-lhes minha provocação inicial: “no teatro, decora-se o script, e, quando surge o momento certo, o mesmo é lançado aos espectadores – se bem que, em certos casos, grandes atores acabam contrariando seus diretores, mudam aspectos da interpretação e fazem estes engolirem e até incorporarem suas mudanças insubordinadas”. E afirmei que a matemática somente se incorpora em nós quando passamos a pensar o mundo a partir da mesma. E que de nada adianta incorporarmos procedimentos e saberes vazios, se os mesmos não nos permitem ler e interpretar o mundo de maneira diferente da que faríamos sem eles. E contei-lhes um fato que me intriga (e irrita) até hoje.

“Sou de uma cidade onde ruas e avenidas são numeradas. Ao contrário do que vemos em cidades como São Paulo – onde os logradouros têm nomes -, em Rio Claro (interior do Estado de São Paulo), os mesmos têm números, os quais seguem lógicas matemáticas. E, desde muito pequeno, tive de saber apenas quatro conceitos para poder ir a qualquer lugar da cidade: números naturais, números pares, números ímpares e transversalidade. Grosso modo, existe uma avenida central denominada “1” (Um). De um lado desta avenida, todas as paralelas a ela vão ter os nomes coincidindo com os números ímpares: Três, Cinco, Sete . . . Do lado oposto, as paralelas à Um chamam-se Dois, Quatro, Seis, Oito . . . A partir de um ponto específico da avenida Um, que coincide com a antiga estação de trens, está a Rua Um, perpendicular às avenidas. Então, seguindo a ordem crescente dos naturais, vêm as ruas Dois, Três, Quatro, Cinco . . . Então, desde que me entendo por gente, quando tinha de ir a algum lugar, perguntava o número da rua (ou avenida) e entre quais transversais se encontrava a casa para onde ia. Sempre morei na mesma casa, e, quando ia dar meu endereço, dizia: ‘moro na Rua 1, esquina com a Avenida 18’. (Às vezes, também me lembrava de dar o número da casa.) Nunca tive problema, nem nunca soube de alguém que não tivesse conseguido chegar a algum lugar por não saber ‘onde o mesmo se encontrava’. Isso até vir morar em uma cidade de ruas não numeradas. Aqui, entendi que, se quisesse chegar a um endereço, deveria sabe-lo de antemão. Pois bem, fico irritado com as pessoas que me dizem: ‘que absurdo! Onde já se viu numerar as ruas. Nunca me adaptaria a isso’. O mais triste, amigos, é que já ouvi isto de professores de Matemática. Mais de uma vez . . .”

Ao dizer isto, uma das alunas mais participativas naquela conversa me perguntou por que estava dando aquele exemplo. E lhes disse que, sem querer me imiscuir nos objetos de estudos de outras pessoas, se tiver de falar – ou mesmo de entender quando me falam – sobre o nome de um músculo do corpo humano, ou de um acontecimento marcante da revolução francesa, ou mesmo sobre os afluentes de um rio famoso, acontece o mesmo que quando tenho de me dirigir a uma rua de São Paulo. Ou já sei, já vi antes, já conheço, ou terei de perguntar para outra pessoa, para o Google ou o GPS. Neste caso, apesar das particularidades lógicas imensas que cada campo do saber contém, resolver certas questões implica em se saber de antemão. E, se o professor de Biologia, um dia, sem ter informado o conteúdo antes, perguntar como funciona o sistema nervoso no humano, os alunos poderão fechar o caderno e dizer: não sabemos. Mas, certamente, neste caso, o professor irá querer que pesquisem. Quando o professor de Matemática lhes pede que, usando os conhecimentos de Triângulos, Retângulos e as noções (básicas) de área e álgebra elementar, deduzam a fórmula da área do trapézio, o trabalho intelectual sai do campo do “sei” ou “não sei”. Aí, é como buscar uma rua, em Rio Claro – supondo-se que os pré-requisitos citados acima estejam garantidos. Não há justificativa para se fechar o caderno. Assim como nunca disse a um amigo que não saberia chegar em sua casa. Se não quisesse ir, teria de usar outra desculpa.

Toda esta elucubração tem uma razão. Após este contato com os alunos, além de sentir, sinceramente, que muitos haviam se tocado, comecei a pensar sobre o que já adiantei acima: por que a Matemática é assim tão complicada – de ser ensinada, aprendida, aceita e amada? Ao ver pessoas me dizerem que consideram complicado seguir ruas e avenidas numeradas, preferindo andar em lugares onde há somente nomes, sinto que, na Educação Básica, as coisas seguem caminhos parecidos. Os saberes matemáticos – e, quem sabe, até de outras áreas – podem não estar fazendo qualquer outro sentido – a alunos e, sinto muito, até professores – que não seja o de conquistar boas notas, aprovação ou conquista de vaga no vestibular. Seria como num jogo eletrônico: vou aprendendo como me locomover na tela, percorro as etapas e, quando chegar ao ponto desejado, desligo o aparelho, feliz pela conquista. E tudo o que fizer ao longo do dia não terá qualquer relação com o que pratiquei durante horas. E estudar e aprender, se não for prazeroso como é o jogo para seus aficionados, pode ser um drama. Triste, não?

Porém, insisto, há que se colocar as ideias para funcionar! Há que se mexer no que incomoda, mas também naquilo em que se acredita e que se faz sem pensar. Muitas vezes, procuramos a solução de um problema sem entender, ao certo, contra o que estamos lutando. As alternativas para que a Matemática se torne palatável podem estar sendo buscadas justamente a partir de situações que a tornam desimportante. É como tentar limpar os pés em um piso sujo. “Mais sério do que uma situação grave é quando a mesma é considerada normal”. Então, talvez seja possível observarmos que equívocos podemos estar cometendo com nossos alunos, e com a Matemática. Quem sabe, possamos tentar fazer com que nossos estudantes construam, de verdade, um sentido para o aprendizado da matemática. E para as aulas de Matemática. Porém, sinto que, antes, é preciso que todos nós aprendamos a construir um sentido para ela em nossas vidas. Se não, como vamos convencê-los de que este jogo é bom de se jogar?

 
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Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações[email protected] ; www.abcdislexia.com.br 

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