O desafio do ensino médio
Após o término da Politéia, passamos a nos indagar sobre a continuidade deles, ou não, em sala de aula tradicional. Joyce afirmou que gostaria e o Thiago demonstrou também o interesse em continuar. Iniciamos então um processo de busca por uma escola que, minimamente, seguisse os princípios da Politéia, priorizando pelo menos a autonomia em detrimento ao conteudismo; ao experimentalismo em detrimento às aulas teóricas. Ficamos sabendo do Colégio Prof Antônio Alves Cruz, uma Escola Estadual de Tempo Integral que, segundo informações, mesclava aulas teóricas com laboratórios e artes de uma forma geral.
Conversando com a diretora e o orientador pedagógico, optamos por matriculá-los, mas novamente nos deparamos com um modelo bem mais voltado para o convencional. Pensamos logo em tirá-los. Porém, pelo contarei a seguir, eles próprios optaram por ficar. O respeito à autonomia deles veio em primeiro lugar.
BOAS NOTAS NO ENEM
Ficamos logo sabendo que se tratava de uma das melhores escolas públicas do Estado de São Paulo no ENEM. Em 2014 e 2015, só perdia para as notas das escolas técnicas. Mas o que significa ter boa nota no ENEM. Faço minhas essa frase do especialista em alfabetização e idealizador da Escola da Ponte em Portugual, José Pacheco, em seu texto Enem não avalia qualidade da escola, apenas a capacidade de memorização do aluno:
“Por efeito de crenças sedimentadas e recurso a propaganda enganosa, se vai vedando aos pais o direito de saber que uma prova como o Enem quase nada avalia, a não ser a capacidade de acumulação cognitiva, de memória de curto prazo …
Muitos pais creem que, se os seus filhos logram obter boa nota no Enem, mutatis mutandis, eles ‘aprenderam a matéria’”.
PRIMEIROS PASSOS
Logo no início, manifestei o interesse em conversar com o coordenador pedagógico da escola. Marcamos então um encontro e, para minha agradável surpresa, ele abriu as portas para que esse encontro fosse com todos os professores. Bastante promissor esse começo. Saí da escola revigorado, acreditando até que poderíamos estar diante de uma continuidade dos avanços conquistados na Politéia, não só do Thiago, mas também da Joyce. Por outro lado, a continuidade desse promissor encontro inicial foi praticamente nula.
Não desistimos e conseguimos agendar outro encontro, no qual coloquei questões como a percepção que nós, os chamados “iguais”, temos do Outro, concebido aqui como pessoa com deficiência, além da importância da escola produzir significados e não mais pensar apenas em quantidade de conteúdo.
ANGÚSTIA
Nesse encontro, o que mais ficou evidente foi certa angústia da maioria dos professores por não saberem o que e como fazer em relação à chamada inclusão. Outros educandos também colocaram a culpa na falta de estrutura da escola, como da própria sociedade, por não conseguirem fazer diferente. Explicamos então que essa escola foi a escolhida depois de muita peregrinação. E que, desde pelo menos o Fundamental II, só efetivamos a matrícula depois de muita pesquisa.
EXPECTATIVAS
Antes de realizar a matrícula, continuei em minha fala, também havíamos conversado com a diretora e o coordenador pedagógico, além do que, tínhamos a informação de que a escola proporcionava uma mescla entre aulas teóricas e experimentalismos no laboratório, além de investir nas artes de uma forma geral. Mais uma vez, a continuidade dessa nova tentativa foi bem pequena. E já estávamos chegando ao final do semestre.
O QUE FAZER?
Nesse primeiro semestre, o resultado foi bastante preocupante. A reclamação era geral: o Thiago não parava em sala de aula e ficava perambulando a esmo pelos corredores. E a Joyce, em diversas ocasiões, era dispersa e não acompanhava atentamente todas as aulas. E essa reclamação se estendia a praticamente todos os alunos.
Enquanto isso, a nossa reclamação era de que permanecer em sala de aula durante todo o dia, tendo apenas alguns poucos momentos de respiro, chega a beirar a desumanidade. E que o Thiago estava materializando o desejo da maioria dos alunos.
Sempre quando alguma expectativa não é satisfatória, vem logo a chamada e muitas vezes salutar crise existencial. O que fazer? Nada como uma parada (as férias escolares) para poder respirar e, com mais calma, tomar decisões importantes. A vida é assim.
TEATRO
Pensando então nos prós e contras, decidimos permanecer. O que nos desanimou foi o excesso de aulas expositivas. Enquanto isso, nas chamadas eletivas, um dos poucos momentos da escola em que o aluno pode respirar e levar em consideração os seus desejos e interesses, pois os educandos escolhem projetos criados pelos próprios educadores. Thiago optou por participar do grupo de teatro. A Joyce se enveredou para um grupo que se propôs a desenvolver um trabalho de reciclagem de lixo.
No final do semestre, ficamos emocionados no final quando ele foi ovacionado pela platéia ao apresentar uma peça sobre o Bumba Meu Boi. E todo esse processo só foi possível graças ao professor de artes que, desde o início, se apresentou como pré-disposto a fazer a diferença.
SOCIAL
E também, um acontecimento no início do semestre, pesou para nossa escolha pela continuidade. Na primeira semana de aula, uma suspeita de bullyng contra o Thiago veio à tona. Para nossa surpresa, toda a escola, sobretudo os próprios alunos, se mobilizaram para cortar o problema pela raiz, o que gerou em nós uma grande e importante tranquilidade em relação a essa questão. A socialização para ambos, nesse contexto, parecia estar satisfatória.
Voltando à tão esperada férias de julho, uma troca de e-mails com o mesmo professor de artes culminou com a realização de um vídeo logo no início do semestre. Na mensagem, agradeci a oportunidade que ele e o grupo de teatro haviam dado para o Thiago e pela sua total e rara pré-disposição no sentido de criarmos uma parceria escola/família.
CINEMA
Procurei demonstrar, no entanto, que ele podia ir muito mais longe, já que na Politéia todos os fechamentos de ano os alunos produziram um vídeo. Anexei o vídeo sobre a Segunda Guerra Mundial para materializar o que havia dito.
Prontamente, o professor respondeu à minha mensagem informando que os alunos estavam produzindo roteiros que poderiam, caso houvesse interesse, serem gravados e editados. A Joyce logo me informou que estava preparando o seu roteiro com um grupo de amigos, mas o Thiago ainda estava alheio a essa dinâmica.
MITOLOGIA GREGA
Perguntei então ao Thiago se gostaria de preparar um roteiro e a resposta foi sim. Foi aí que, indagando sobre qual seria o seu interesse, ele próprio optou por preparar um roteiro sobre a mitologia grega, mais precisamente o mito do Minotauro, na Grécia Antiga.
Como ele já havia criado um texto próprio sobre o tema, que foi publicado no Jornal DownBrasil e Você, resultado do curso de Jornalismo Prático que eu havia proposto e estava colocando em prática na Associação Downbrasil e Você, tratamos logo de montar, juntos, o roteiro. Enquanto isso, o professor de Artes se predispôs a gravar e a ajudar na edição do filme em que o Thiago fez o papel de Teseu, que matou o Minotauro na História. A meu ver, todo esse processo foi uma clara demonstração da importância de uma parceria escola/família.
NOVOS VÍDEOS
Nesse semestre, novos vídeos foram produzidos com e pelo Thiago. Temas como o efeito estuda fizeram parte de uma série de vídeos, o que fez os professores de outras áreas a pensarem o mesmo sobre todos os alunos. Acredito que todo esse processo gerou uma quebra importante de paradigma, ou seja, passaram a acreditar mais no Thiago, mas não o suficiente.
“BANDA DE ROCK”
Outro ponto que nós apostamos foi chamado pela própria escola como Clubes, em que os próprios alunos se reúnem a partir de interesses em comum e com total autonomia. O Thiago foi logo se enturmando com o Clube da Música, sendo que seu interesse maior foi uma banda de Heavy Metal criada pelos alunos na escola.
“ALMA DE BATERA”
Vale aqui uma ressalva, por um período de praticamente três anos, Thiago participou de um projeto chamado “Alma de Batera”, criado pelo pedagogo e baterista Paul Lafontaine para atender às chamadas pessoas com deficiência. No início, um dos integrantes da banda me disse que Thiago “brincava” com um instrumento ao lado e eles ensaiavam no outro.
Conversei rapidamente com ele dizendo que Thiago deveria estar ensaiando também e a nossa perseverança começou a dar resultado quando o vocalista da banda veio nos informar que ele havia tocado em público no interior da escola. Uma simples conversa, sem imposição, foi o suficiente para que a banda, sobretudo o vocalista, acreditasse e investisse no Thiago. Parte da comunidade escolar ficou espantada e admirada: Thiago sabia tocar bateria!
Nada como uma simples mudança de foco no Olhar.
É o que faz a diferença e nos leva a mudar de atitude.
APRENDIZADO FORA DA SALA DE AULA
A questão do excesso de aulas teóricas não cessou e a reclamação em relação ao Thiago continuou a ser que ele “fugia” da sala de aula e ficava rondando a esmo nos corredores da escola. Tempos depois, descobri que o local aonde muitas vezes ele ia se “esconder” era, vejam só, a sala de leitura, ou melhor, a biblioteca. Significa dizer que ele escapava da sala de aula, onde não havia significado, para poder ler temas de seu interesse em outro ambiente bem mais significativo.
Poderíamos dizer também que ele fugia da sala para estudar na biblioteca. Nada mais paradoxal. Vale aqui ressaltar que a bibliotecária o recebia de braços abertos e, o que é importante enfatizar, a bibliotecária sempre investiu e acreditou (e ainda investe e acredita) em sua potencialidade criativa.
NOVO IMPASSE
Para nós, não eram fugas ingênuas e, muito menos, irresponsáveis. Era a forma que ele encontrava para driblar o tsunami de conteúdos impostos pelos professores. Outros alunos dormiam em sala de aula e outros ainda sorrateiramente se esquivavam para o celular. Sempre foi essa, inclusive, a reclamação dos professores. Falta de atenção e dispersão por conta da tecnologia.
ESCOLHA PRÓPRIA
Uma solução simples, para o dilema que estávamos enfrentando, era retirá-los na escola. Por outro lado, sobretudo por conta da banda de rock, Thiago não queria sair. E a Joyce, mesmo concordando e tendo que enfrentar o excesso de aulas, havia pela primeira vez conquistado um grupo grande de amigas. Como então tirá-los?
PARCERIA
A nossa saída enquanto pais, diante desse dilema, foi a de propor a entrada da família na escola. Gostaríamos que fosse para os dois, mas não foi possível. Nesse sentido, a partir de uma boa conversa com a diretora, propomos a criação do que já é chamado por nós de sala de apoio. Em vez de obrigarmos o Thiago assistir a todas as exaustivas aulas, passamos a ficar com ele na biblioteca estudando o que havia de interesse no currículo proposto.
DESEJO PRÓPRIO
A nossa entrada na escola não foi para buscar uma adequação ao currículo estabelecido ou, o que seria pior, promover uma espécie de reforço do que ele supostamente não estava acompanhando. Escolhíamos, no extenso currículo, o que visivelmente e declaradamente era de seu interesse e desejo, sobretudo em Filosofia, Sociologia, Geografia e Língua Portuguesa, entre outras das ainda chamadas disciplinas.
A MATEMÁTICA
Procuramos inclusive estabelecer uma sequência de sua trilha metodológica na Politéia. Em matemática, com o apoio bastante revelador da professora, esquecemos o estabelecido e passamos a seguir o seu ritmo e interesse próprio. No segundo semestre do ano houve a salutar parceria da professora de matemática e ele avançou significativamente, sobretudo na soma e na diminuição.
A multiplicação merece um capítulo à parte. No primeiro semestre desse ano, me incomodava muito ele não avançar e o professor, apesar de muito interessado, não estava conseguindo ter tempo para caminhar. Pesquisei então a conhecida plataforma Khan Academy e encontrei um possível caminho.
A escola já usava essa estratégia. Porém, a meu ver, não de forma significativa, pelo menos não para ele. Hoje ele está em pleno andamento e, o que é melhor, gostando. Chegou a vez da divisão e do que lhe interessar daqui para frente.
CIÊNCIAS EXATAS
Nas outras, ainda equivocadamente das chamadas disciplinas, como Física, Química e Biologia, fizemos o possível, sendo interessante acrescentar que, já no primeiro semestre de 2015, ele próprio chegou a levar o interesse por refazer experiências em Física e Química, já realizadas no laboratório da escola, com a sua psicopedagoga.
LABORATÓRIO
Para nós, foi a prova definitiva que o laboratório é bem mais significativo do que as aulas teóricas. Mas o que continuou faltando é uma ponte da escola com a família. Sabemos por ele esse interesse pelo laboratório. Por outro lado, o retorno dos professores foi (e continua sendo) quase nulo.
AUTONOMIA E CIDADANIA
Continuo essa minha reflexão fazendo uma análise crítica do Caderno do Aluno nessa área do conhecimento, publicado e imposto homogeneamente para os alunos do Estado de São Paulo, como se todos eles fossem um só.
No considerado primeiro ano, os temas básicos tratados foram desde o papel do sociólogo no mundo atual até a construção social da identidade e o processo da socialização e da aprendizagem. Debateu-se ainda a importância das relações e das interações sociais em nosso cotidiano, além da questão das diferenças culturais, das desigualdades de todo o tipo e do chamado determinismo genético.
Aparentemente não há o que criticar. São temas extremamente atuais. A questão é: como torná-los significativos para e na vida de cada educando? Com aulas expositivas? Ou com vivências?
CAMINHO SIGNIFICATIVO
Sabendo do desejo do Thiago por mapas, curiosidade essa que, por sinal, nasceu de seu interesse pela música e pelo futebol, lancei uma proposta a ele, no segundo semestre de 2014, prontamente aceita: A de entrevistar estrangeiros que migraram e residem no Brasil, o que coincidiu, aliás, com uma das principais propostas do Caderno do Aluno: o tema Migrações Urbanas.
Foi aí que consegui marcar uma entrevista com o meu amigo boliviano Jaime Adolfo Oblitas. Thiago tratou logo de preparar as perguntas, levantando temas de seu conhecimento e interesse. Indagou sobre a condição escrava de muitos bolivianos em São Paulo e descobriu que a mãe do entrevistado é indígena e o pai espanhol. Perguntou ainda sobre quem é o atual presidente da Bolívia, o indígena Evo Moralles, além de se aventurar pela construção da identidade boliviana.
PAPEL DO ENSINO MÉDIO
É possível arriscar que em uma única prática vivencial foi abordado todas as temáticas propostas pelo Estado para os dois primeiros anos do Ensino Médio. Os conteudistas de plantão logo poderão retrucar que faltou aprofundamento. Uma boa pergunta.
Respondo essa pergunta com outras questões:
- Qual deve (ou deveria) ser o papel do Ensino Médio e, mais precisamente, de áreas do conhecimento como a Sociologia e a Filosofia, na vida de seus educandos?
- Embarcar no que o ainda atual pensador brasileiro, Paulo Freire, habilmente chamou por Educação Bancária?
- Ou investir na possibilidade dos educandos se tornarem cidadãos conscientes e autônomos em suas vidas?
Com toda essa vivência, não foi difícil descobrir que o problema não está na inclusão e sim na manutenção de uma escola, que surgiu excludente em meados do século XVIII e que agora, sem mudar a sua estrutura, quer ser inclusiva. Acredito ainda que minha filha Joyce, também cursando o mesmo período, merece um aprendizado mais significativo e não meramente quantitativo.
E ela descobriu isso, na prática, com a sua experiência na Politéia, que ficará na memória dela, a meu ver, em toda sua vida. Mas se ela ainda tinha alguma dúvida, já que estamos falando agora do Ensino Médio, com as aulas livres ocorridas durante o que os próprios estudantes chamaram de uma “onda de ocupações” das escolas estaduais de São Paulo que ocorreu “entre o norte e o sul” em 2015, essa dúvida foi definitivamente sanada. Mas esse é um tema para outra oportunidade. Por enquanto, fico por aqui. Até a próxima.
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Leia os dois primeiros capítulos desta série:
Primeiro capítulo: Relato De Um Pai : A Síndrome De Down E A Inclusão Socioeducativa
Segundo capítulo: A educação democrática: relato de uma experiência