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Guia para Gestores de Escolas

O que podemos ensinar na volta às aulas?

 

Em férias, a ideia que mais nos atrai é parar e não pensar em qualquer coisa que se possa se relacionar com nosso trabalho. Mas, será possível isto? Não sei se alguém consegue, de fato. E, para quem trabalha com Educação, acho que as coisas ficam ainda mais difíceis. Acontece que lazer implica – entre outras atividades prazerosas – em poder ler mais, ir mais a cinemas, teatros, assistir a mais noticiários. . . A vida que, muitas vezes, não é percebida enquanto dedicamos muitas horas do dia a ensinar, aprender, pensar em como ensinar e em como aprender, agora pode ser contemplada e, por que não, indagada. E, portanto, quem sempre vê pelo em ovo quando tem de trabalhar sério, imaginem quando pode “parar para pensar”. . . Então, aqui vai! Tenho mais um problema a apresentar. Mas, acho que posso também tentar inventar alguma solução.

Andei vasculhando os grandes jornais de nosso país para buscar notícias, artigos e matérias que poderei discutir com os alunos quando as aulas recomeçassem. É que uma angústia enorme vem percorrendo toda a minha vida de professor:o que devo ensinar aos meus jovens estudantes? Sei que existem os conteúdos programáticos, as grades curriculares e por aí vai. Sei, também que, na educação voltada para os vestibulares, somente aqueles profissionais muito criativos conseguem driblar certos conteúdos soporíferos e trazer coisas interessantes – ou, até, trata-los de forma mais palatável. Não sei se é o meu caso. Então, dirijo-me aos periódicos, às obras de arte que estão desfilando por aí, a fim de tentar colorir as minhas aulas. E, na semana passada, deparei-me com algo que me fez pensar demais. Para dizer a verdade, vi-me entre impotente e desanimado. Sinceramente, antes de borbulharem as boas ideias, senti uma ponta de desejo por uma musa escultural e sedutora chamada aposentadoria. Mas, a minha fidelidade àquela que é a luz do meu caminho, paixão que não se abala, fez com que voltasse à anormalidade e ao leito conjugal. E, antes que oportunistas me chamem de volúvel, mulherengo ou coisas do gênero, esclareço: minha paixão é pela sala de aula – mesmo trabalhando, muitas vezes, à distância, no Skype, youtube etc. E o fato que me causou tristeza – esta é a única palavra que consigo escrever, aqui – foi a cobertura dada, pela nossa grande mídia, à fala do Papa Francisco em sua visita à Bolívia – para ser mais específico, trata-se de sua fala a líderes de movimentos populares, reunidos em Santa Cruz de La Sierra.

Há décadas, não leio um discurso tão forte, contundente e posicionado de um líder católico. Em sua postura de homem identificado com a condição humana, mais do que com dogmas e verdades absolutas, Francisco não ficou em cima do muro. Foi límpido e preciso em sua mensagem. E, sabendo-se figura de importância notória no mundo, revelou coragem extrema em seu posicionamento, principalmente político.

Posicionado claramente ao lado de representantes de operários, camponeses, gente sem teto ou terra e miseráveis em geral de nosso continente, Francisco falou, sem meias palavras, coisas como: “queremos uma mudança, uma mudança real, nas estruturas. Este sistema não se aguenta, não o suportam os camponeses, os trabalhadores, as comunidades, não o aguentam os povos”. E, como bom franciscano – apesar de ser jesuíta -, afirmou que, principalmente, a “mãe Terra” não dá mais conta de tanta exploração inconsequente da chamada Economia de Mercado – segundo alguns, eufemismo doce para Capitalismo. Alertou para o fato de que, “quando o capital se converte em ídolo, e dirige as opções dos seres humanos (…) arruína a sociedade, condena o homem e o converte em escravo”. E disse, com toda a firmeza – fato que jamais veremos em políticos de ponta de nosso país -, que “devemos dizer ‘não’ a uma economia de exclusão”. E que “essa economia mata”. Para Francisco, “os povos do mundo querem ser artífices de seu próprio destino. Querem caminhar em paz rumo à justiça social. Não querem tutela nem ingerências onde o mais forte subordina o mais fraco”. E uma das coisas mais sérias: criticou os meios de comunicação social, colocando sua “concentração monopólica” como “outra das formas adotadas pelo novo colonialismo”. Tudo isto, e muito mais, num discurso longo e intenso, foi dito por um líder mundial que, sem sombra de dúvida, sabia estar falando para todo o mundo. Forte, chocante, não? E como foi tratado o fato pela nossa imprensa?

Sem que o texto integral fosse publicado por quase nenhum grande jornal – diferente do que acontece, por exemplo, quando Dunga dá uma entrevista coletiva -, nossa imprensa focou no presente que Evo Morales deu ao papa: a “cruz comunista”! Em verdadeiro alarido sobre uma “provocação” do presidente boliviano a sua santidade, nossa mídia tomou, sem qualquer constrangimento, um fato periférico e o colocou como central. E até pior que isso! Não dando subsídios àqueles poucos que costumam querer entender as notícias antes de se posicionarem, nossos periodistas omitiram – sim, pois, se eu me informei, por que não fizeram o mesmo? – o fato de ser tal objeto uma réplica, em madeira talhada, da obra de outro padre jesuíta, o espanhol Luis Espinal Camps. Um desses missionários que costumavam vir à América Latina, décadas atrás, e que acabavam por se envolver nas lutas contra os tais “ridículos tiranos”, como os apelidou Caetano. E, detalhe, Espinal, assim como tantos outros, foi torturado e morto. “Mal-estar na Igreja Católica? Não! De forma nenhuma”, garantiu o Vaticano. “Entendemos a homenagem.” Pasmem: Morales sabia mais que nossos jornalistas! E, se os brasileiros pudessem ter lido o discurso (na íntegra) do sumo pontífice, considerariam tal presente um refresco, se comparado às palavras de Francisco. E, além dessa parafernália diversionista de nossos “meios de comunicação social”, as notícias sobre o discurso foram colocadas em frases soltas, destituídas de contexto, e seguidas por comentários – de gente que, sinceramente, não nos enche os olhos, nem os ouvidos (pelo menos, não de coisas boas) – chamando, por exemplo, de pobres as argumentações do papa. E o resto é silêncio.

E, aqui, o velho professor que deseja fazer com que nossos alunos se arejem um pouco das causas e consequências da Guerra dos Cem Anos, das Equações Trigonométricas, das Distribuições Eletrônicas e do Citoplasma da Ameba, percebendo um acontecimento destes– o discurso de Francisco –, acaba ficando cheio de ânimo. Porém, vendo-o ser tratado desta maneira, já pressente que, em agosto, quase ninguém se lembrará de que o papa esteve na Bolívia. Certamente, os poucos que se lembrarem, saberão apenas que “o comunista Morales lhe fez uma indelicadeza”. E a retomada deste fato acabará sendo tão problemática quanto uma discussão sobre a Velha República. E dá-lhe criatividade! Dá-lhe shows pirotécnicos!

Nossa! Desanimado e cansado . . .

Mas, não! Não quero me dar por vencido! Tenho de reagir! Não vou deixar que uma fala capaz de polarizar opiniões no mundo, abalar ou reforçar a fé das pessoas, gerar amor ou ódio, e até suscitar boicotes, seja jogada na lata do lixo. Vou tentar imitar meus jovens colegas. Vou ser criativo! Vou propor a eles – os alunos – uma brincadeira nova. Sim! Algo como levar o discurso para suas casas e lê-lo com seus pais. (Talvez, eu tenha de traduzi-lo, mas, tudo bem.) E, depois, deverão trazer as conclusões para a sala de aula. E discuti-las. E tentarei, ainda, inaugurar alguma nova polêmica. Quem sabe propor: por que a imprensa brasileira não quis discutir o tema? Por que nossa mídia não considerou importantes as afirmações de Francisco, a ponto de nem se preocuparem em traduzir seu discurso na íntegra? Por que seria relevante discutir se o Capitalismo é (ou não) tão nefasto como afirma Francisco? Será que seria? O tão celebrado “papinha”, de repente, alucinou? A quem pode interessar um debate sobre suas ideias, hoje, e para quem isso é perda de tempo? Por que, nas redes sociais, apareceu tanta gente abominando o “crucifixo comunista” do Morales, e quase todo mundo fez silêncio sobre o discurso do papa? O papa é menos importante que o Dunga? Será que conseguiriam pesquisar quantos minutos as TVs gastaram abordando a fala de Francisco e comparar este tempo com o que foi dedicado à morte do famoso cantor Cristiano Araújo? O que é mais falado nas redes sociais? Falando nisso, quem consideram que pisou mais feio na bola, Evo Morales ou Zeca Camargo (vale a pena resumir em uma frase o que o Zeca fez? Acho que sim) ? A imprensa trata os diferentes assuntos da mesma maneira? Se não, por que o faz? E, por fim, uma pesquisa: quem são os grupos, ou famílias, que comandam as nossas empresas de comunicação? Como foi essa história nos últimos cem anos?

Talvez o leitor esteja sentindo pena de mim. Alguns dirão: “não vai ter tempo”! Outros: “e o vestibular”? Aqueles mais pessimistas: “nem os alunos nem as famílias vão entender a sua proposta”. Alguns amigos: “vai para a serra gaúcha, João”! E sei que haverá quem me chame, depois, no cantão e me diga: “isto está no seu plano”?

Mas, não importa. Esta ideia é mais uma das minhas loucuras, e costumo ser fiel a elas – assim como à sala de aula. E tem mais: foi gerada em um momento de ócio, ou seja, quando não havia nada compulsório a fazer. Não precisava escrever nem corrigir provas, fazer planejamentos, decorar as musiquinhas para dar aula de Transformações Trigonométricas . . . Foi puro sentimento de preocupação com minha profissão de educador. Afinal, as férias estão meio monótonas. Não há nada de novo acontecendo, mesmo . . .

 

 
joao-luiz-muzinatti
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações[email protected] ; www.abcdislexia.com.br 

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