Uma guerra-santa diária na escola
Nas nossas escolas, verdadeiras batalhas são travadas todos os dias para fazer com que o aluno pouco envolvido, e mesmo aquele que simplesmente não consegue acompanhar o ritmo da maioria do grupo, passe a dar resultados satisfatórios. Muito se vem tentando e inovando. E não se pode dizer que não haja progressos. Mas, parece que a poeira ainda demora muito a assentar.
O cenário pouco varia de escola para escola. Reuniões e mais reuniões com a família, tentativas de atendimento diferenciado, angústia e até pressões se sucedem, para que o ano seja salvo e que quem está fora do processo possa voltar ao jogo. Afinal, a credibilidade da escola e a parceria com a família não podem perder terreno. E, depois de desencontros e perplexidades, eis que surge a possibilidade de haver um distúrbio de aprendizagem – dificuldade que advém de um problema orgânico (neurológico ou fonoaudiológico, entre outros). E, a partir de um diagnóstico curto e grosso, o problema migra da escola para os consultórios dos mais variados especialistas. E todos parecem ficar mais tranquilos.
Nesse momento, a responsabilidade parece sair da escola e o profissional especializado passa a encarregar-se da árdua tarefa de reconduzir o aluno ao mundo que perdeu pelo caminho. Então, a escola, de magna instância no processo de construção do conhecimento, passa a coadjuvante, disposta sempre a cumprir com as determinações e exigências do binômio profissional-família.
Vasta papelada, com laudos, receitas e até cópias da constituição brasileira, passam a empanturrar as mesas das coordenadoras. E estas, sem hesitar, retransmitem tudo aos professores. Aulas especiais, provas especiais, relatórios e mais relatórios começam a movimentar e-mails, armários e gavetas. Muitas vezes, atritos entre as partes – com a melhor das intenções – acabam acontecendo pelo simples fato de que a interpretação de tanto material se torna mais difícil do que a preparação do plano anual.
E o aluno, confuso com a pirotecnia e sem saber o que pensar, engaja-se numa nova empreitada: aprender a gramática dessa nova língua que, de repente, começaram a falar na sua cabeça. Desconfiado de tanta atenção repentina e sem saber se sua sorte vai mudar ou não, começa uma nova rotina. Perplexo e até despontado, vê seu horário ficar cada vez mais carregado – pois, às horas de aulas, somaram-se as terapias, sessões de fono etc. E aquele que nunca soube se organizar para fazer o mínimo, agora passa a ter vida de trabalhador (com jornada dupla e tudo).
Tudo parece ser sempre tratado com muita urgência – a já costumeira urgência da sociedade pós-moderna, onde não se pode nunca perder tempo. E, ao diagnóstico, a toque de caixa, somam se diretrizes atropeladas, avaliações exigidas da noite para o dia – e produzidas da noite para a madrugada -, relatórios semanais (caso se tenha folga, quando o caso não é muito sério) e notas – e têm de ser boas notas. Afinal, de que serve o processo sem o produto?
A avalanche, muitas vezes, acaba sufocando a todos e, um belo dia, a legião resolve propor trégua ao inimigo. Diminui-se o ritmo, olha-se fixamente para o protagonista principal da contenda e o inventário da guerra-santa tem início. Baixas e trocas no exército, revisão de rumos e uma luz nova no caminho. “Há coisas que não havíamos percebido e que, agora, começam a aparecer”.
Aos poucos, o ritmo começa a baixar, os desvios gritam a plenos pulmões e a história começa a ser contada de outras maneiras. Um diagnóstico novo, outro, outro. Devagarinho, as frentes se organizam, a estratégia é aprimorada e o trabalho começa a se escrever em caracteres mais legíveis. Num canto qualquer da sua perplexidade solitária, o aluno começa a ver traços de sol pela areia que vai baixando.
Por Prof. João Luiz Muzinatti*
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: [email protected] ; www.abcdislexia.com.br