Perfil da Escola — Liceu Coração de Jesus
Matéria publicada na edição 64 | Dezembro 2010/ Janeiro 2011 – ver na edição online
A união em defesa da escola, de um bairro, de uma história
A mais antiga escola Salesiana do Estado de São Paulo, que atende hoje a menos de 10% do público de seu auge, mobiliza a mídia e ex-alunos, corre atrás de parcerias, busca receitas alternativas e amplia os serviços. Tudo para manter as portas abertas de um belo e privilegiado espaço no centro da Capital e manter viva uma proposta humanista de ensino, à espera da revitalização da área e da chegada de novos moradores.
Por Rosali Figueiredo
Uma Ação de Graças reuniu ex-alunos, estudantes, pais e familiares ligados ao Liceu Coração de Jesus no último sábado de novembro de 2010, em comemoração aos 125 anos da escola encravada nos Campos Elíseos, área central de São Paulo. Foi uma homenagem singular, pois a data festejou também um ano da intensa mobilização que a instituição e ex-alunos empreenderam em defesa do mais antigo colégio Salesiano do Estado de São Paulo, que chegou a ter três mil estudantes nos anos 60, concluiu 2010 com apenas 278 matriculados e tornou-se “refém” da debandada dos moradores e da degradação da região, colada na chamada “cracolândia”.
O evento mostrou ainda que o pior já passou. O Liceu não fechará as portas, ao contrário dos temores que atingiram a comunidade escolar e deram o tom da cobertura da mídia no final de 2009. Desde então, o cenário melhorou bastante. Suas calçadas não estão mais tomadas pelos usuários de crack, receberam iluminação e arborização, em uma verdadeira estratégia de “ocupação” sugerida por um especialista em segurança, levado à escola por ex-alunos. O orçamento foi equilibrado, parcerias estabelecidas e novos projetos e serviços engatilhados para 2011. “Houve um salto de conceito”, avalia o padre e diretor Benedito Nivaldo Spinosa, lembrando que isso de alguma maneira reavivou o espírito de professores, funcionários e alunos.
Para quem circula em suas edificações em estilo predominantemente renascentista, a sensação que se respira é a do conforto proporcionado por uma escola de espaço privilegiado e bem cuidado, com jardins, amplas salas de aula, biblioteca, duas salas multimídia, salões de festas, cantina, refeitório, duas quadras externas e uma interna, laboratórios, o Museu de História e Ciências Naturais, a igreja (Santuário do Sagrado Coração de Jesus) e o Teatro Grande Otelo, com capacidade para 700 lugares. O conjunto de 17 mil metros quadrados é tombado pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado) e ocupa o quarteirão formado pelas alamedas Dino Bueno, Glete, Barão de Piracicaba e Nothman. E para quem conversa com Benedito Spinosa, a sensação que se absorve é a da confiança no propósito de manter o Liceu vivo, revigorando a ocupação de seu espaço.
Podar para fortalecer
Graduado em três cursos de nível superior, especializado em Psicopedagogia e mestre em Educação e Comunicação, o padre revela cautela em relação à missão que lhe foi confiada pela Inspetoria dos Salesianos em 2007, quando assumiu a direção da escola. Ex-diretor de outras unidades da rede Salesiana e ex-assessor de comunicação da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Benedito Spinosa diz apenas que chegou ao Liceu para “dar uma resposta sustentável para a escola”, com soluções “criativas” (como a mobilização da comunidade, a busca de receitas alternativas e a oferta de novos serviços), mas também drásticas, entre elas o fechamento do Ensino Médio (EM) e do turno vespertino.
Ao final de 2009, o Liceu dispensou 75 alunos do EM, testemunhou – como reflexo – a saída de outros tantos e suscitou textos nostálgicos na mídia, os quais tomavam o seu fim como um processo inexorável. “Os estudantes do 2º ano ficaram muito bravos comigo, não queriam ir embora”, lembra o padre. “Mas uma hora tínhamos que parar, porque o EM era deficitário; com esse corte, entramos em equilíbrio orçamentário”, revela. O Liceu permaneceu com a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, em regime parcial ou integral, e atraiu cerca de 100 novos estudantes com algumas ações, entre elas a ampliação da jornada integral.
“É como cuidar de uma árvore, podando você revigora a seiva. O desânimo das turmas reduzidas do Ensino Fundamental no vespertino respingava sobre os demais e deixava no ar a incerteza se o colégio iria ou não fechar. Nesse ano não se falou mais nisso”, compara o dirigente, animado com as perspectivas, já que o 7º ano está com 35 alunos e poderá, quem sabe, gerar duas salas futuras de 1º ano do Ensino Médio. “A gente começa a ter certa esperança”, comenta Benedito Spinosa, às voltas hoje com diferentes parceiros de negócios. Um dos principais é o Grupo Foco, que gerencia o Projeto de Teatro Educativo na casa, cuida da locação dos espaços para ensaios de peças comerciais e acompanha as reformas nas instalações. O Liceu pretende oferecer três salas de espetáculos ao circuito das artes cênicas a partir de março de 2011, com nova iluminação e numeração das cadeiras na sala principal (Grande Otelo), construção de um espaço no porão (com palco central e arquibancadas laterais) e reforma de um de seus auditórios multimídia. Orçado em R$ 100 mil, o projeto contempla a instalação de elevador único para acesso aos três ambientes.
Outra parceria foi estabelecida com a vizinha Porto Seguro, a partir de um convênio para descontos nas mensalidades dos filhos de seus funcionários e também com a locação de oito salas para cursos e treinamento da seguradora. Articulando-se com os lojistas das imediações e uma base móvel da Polícia Militar (já desmobilizada), a escola conseguiu afastar dezenas de usuários de crack que se instalavam embaixo das janelas das salas de aula, mantendo-os a uma distância mínima em torno de cem metros. O problema continua muito próximo, reconhece padre Benedito Spinosa. “Estão transferindo o usuário de lugar sem oferecer solução para isso”, ressalva. No entanto, o diretor acredita que os projetos de revitalização da área central poderão dar novo fôlego à instituição.
Da mobilização
Grandes aliados vieram também da imensa comunidade de ex-alunos, que hoje reúne 700 adesões na rede social do Orkut, mobiliza festas e jantares, rende artigos na internet, reportagens em programas de rádio e até mesmo documentários produzidos como trabalhos de conclusão de cursos de nível superior. Um grupo de pelo menos dez deles deu início ao Movimento Viva Liceu, capitaneado por Michel Porcino, jovem empresário da área de serviços graduado em Direito, que cursou ali o Fundamental II e o Ensino Médio, no período entre 1995 e 2001. Na época, o número de estudantes já estava em declínio, por conta não apenas dos reflexos da região, mas da crise vivida pela maioria das escolas confessionais, da diminuição do número de filhos adolescentes entre as famílias de classe média e do aumento da concorrência na rede privada de ensino.
Michel voltou a freqüentar o Liceu no final de 2009, após tomar conhecimento, pela imprensa, da iminência de fechamento da escola. “Começamos a nos mobilizar de imediato”, relata o coordenador do Movimento, que ainda naquele ano criou o “Viva Liceu” (um dos motivos das comemorações da Ação de Graças de 27 de novembro passado) e conseguiu mobilizar um abraço dos ex-alunos em torno do colégio. Em abril de 2010, houve a primeira grande festa, a qual acabou servindo como palco para o reencontro de um casal de ex-alunos, que resolveram celebrar o matrimônio (cerimônia religiosa e recepção) nas dependências do Liceu. A construção de um novo site, com apoio dos Salesianos do Santa Teresinha, colégio da zona Norte de São Paulo, foi outro fruto do movimento. Agora, Michel e sua colega Claudia Soares de Oliveira, ex-aluna e ex-professora, buscam parceiros que banquem o projeto Empreendedorismo na Terceira Idade, com o propósito de ensinar e capacitar pessoas com mais de 50 anos, moradoras da região, a abrirem seus negócios no entorno e, dessa forma, contribuir para a revitalização local.
Todos apostam nos projetos de intervenção urbana para a região, como o Nova Luz, um estudo da Prefeitura de São Paulo que prevê a desapropriação de imóveis e implantação de praças, calçadões e ciclovias, com vistas a atrair moradores. Também a inauguração da unidade do SESC Bom Retiro, vizinha ao Liceu e prevista para 2011, injeta ânimo nas mobilizações e parcerias. Comparando-se a situação atual do Liceu com a do Instituto Nossa Senhora Auxiliadora, instituição da rede Salesiana localizada no bairro do Belenzinho, zona Leste da cidade – e tema do Perfil da Escola da edição de novembro passado, Michel observa que o INSA encontra-se “um passo à frente do Liceu”, justamente porque a revitalização daquela região já está em pleno andamento, com muitos empreendimentos recentemente concluídos e habitados. “A situação do INSA é melhor que a do Liceu, pois estão num momento bem legal, de retorno dos moradores”, avalia, por sua vez, o diretor Benedito Spinosa, de olho nos edifícios residenciais que estão sendo erguidos em ritmo intenso na região da Barra Funda.
Recursos pedagógicos
São, portanto, muitas as frentes de trabalho (e de esperança). Como profissional da comunicação, padre Benedito Spinosa desencadeou o processo de divulgação e mobilização, emplacando a bandeira “Viva Liceu”. Como gestor, lançou estratégias de negócios baseadas em parcerias, busca de novas receitas, lançamento de serviços (atividades nas férias, por exemplo), mas também cortes e ajustes. E como educador, introduziu aulas de Educação Financeira e Ecologia na matriz curricular do Fundamental II, entre outros. “A escola acontece na sala de aula, podemos pensar em milhares de estruturas e recursos, mas esta é que precisa funcionar”, destaca. Benedito Spinosa colocou-se também como professor, assumindo as aulas de Filosofia do EFII. “Isso foi muito importante, porque me permitiu pensar mais nas condições de ensino”, diz.
Como parte da Rede Salesiana de Escolas, o Liceu adota a chamada Pedagogia Preventiva, desenvolvida pelo sacerdote e educador italiano Dom Bosco, no século XIX. “Ele foi uma espécie de Castelo Rá-tim-bum antes do tempo”, comenta Benedito Spinosa, já que o modelo adota as atividades lúdicas e circenses como recurso de ensino-aprendizagem. Assim, não é estranho que uma das principais apostas do Liceu esteja hoje no teatro, mas o balé, o esporte, o canto coral, a música e as artes plásticas figuram no cotidiano da rotina escolar, contando com um raro e precioso bem: a abundância de espaço.
Mais do que isso, entretanto, o que está em questão é sua tradição de ensino humanista, de uma instituição que foi pioneira ao acolher filhos de escravos, teve em seus quadros nomes fundamentais da cultura brasileira (como Monteiro Lobato e Grande Otelo), entre muitas outras personalidades, e ainda hoje, sob orçamento restrito, desenvolve projetos sociais, como o EJA (Ensino de Jovens e Adultos, com onze classes no horário noturno), uma creche para 210 crianças (em convênio com a Prefeitura) e o Abrigo Dom Bosco (para 56 catadores de papel na região).
Saiba mais:
Pe. Benedito Nivaldo Spinosa
www.liceusaopaulo.com.br
[email protected]
Claudia Soares de Oliveira
[email protected]
Michel Porcino
www.vivaliceu.wordpress.com
[email protected]