É necessário pintar o calendário do ano inteiro de amarelo
Por Rossandro Klinjey
Nos últimos meses do ano, os debates em torno da saúde mental recebem um enfoque muito maior. Graças ao chamado mês amarelo, as pessoas como um todo tendem a olhar para o assunto de uma forma muito mais detalhada. Já como psicólogo, costumo dizer que convivo em um constante Setembro Amarelo, tendo, como quase que um dever, avaliar de forma ininterrupta como esses muitos problemas socioemocionais estão atingindo a sociedade.
Nessa análise, tenho percebido que as perturbações estão cada vez mais comuns e constantes, sobretudo após a pandemia, para todas as pessoas, sem praticamente nenhuma exceção. Mesmo os indivíduos que estão bem mentalmente, basta um mínimo de empatia que eles acabam “chocados” com as dores do coletivo adoecido à sua volta.
Se por um lado está claro que os transtornos mentais estão sendo mais notificados, temos que entender que isso também é uma consequência de uma preocupação latente da sociedade. Dessa forma, a saúde mental vem, felizmente, deixando de ser um tabu e a discussão sobre o tema vem tomando uma dimensão cada vez mais relevante.
Uma prova concreta disso está no simples fato de famosos conseguirem expor publicamente que estão passando por um momento delicado. Celebridades, como Whindersson Nunes e Wesley Safadão, revelando a situação na qual estão vivenciando ajudam a população a compreender que sucesso e dinheiro não são sinônimos de felicidade, e nem são suficientes por si só para uma satisfação plena.
No entanto, a grande verdade é que o adoecimento coletivo na sociedade já é perceptível em todas as esferas e acaba por gerar uma espécie de um perigoso ciclo vicioso, sem um fim compreensível.
Podemos pegar como exemplo uma situação que ocorre cotidianamente no ambiente escolar. Hoje podemos dizer claramente que os professores estão adoecidos porque as crianças estão “problemáticas” e os pais não cumprem o seu papel. Por outro lado, os pais também estão adoecidos, já que esperam terceirizar somente para a escola a tarefa educacional, que não pode, e nem deve, ser terceirizada. Em meio ao turbilhão, as crianças se tornam vítimas e acabam também desenvolvendo problemas.
Já quando analisamos o meio empresarial e corporativo, percebo que o espírito do tempo que vivemos hoje colabora com a expansão do adoecimento mental da sociedade. Mantras rasos e cada vez mais pulverizados sem o mínimo zelo, tais como “Trabalhe enquanto eles dormem”, “Trabalhe com o que você gosta, que você não irá trabalhar nunca”, são máximas de pouca sustentação prática, e que privilegiam apenas a noção de alta performance.
A impressão que todas essas frases prontas passam é de que a culpa de um eventual insucesso seja única e exclusivamente da pessoa em si, excluindo totalmente os contextos que o cercam. Não à toa, a somatória desses aspectos ocasiona no aumento exponencial dos casos de Burnout e esgotamento mental para todos os níveis de profissionais, inclusive os chefes/c-levels. Até porque, essas condições problemáticas não afetam só quem leva grito, mas quem promove uma cultura organizacional tóxica.
Se todo o cenário já é altamente problemático quando avaliamos os ciclos externos, essa tendência se torna ainda mais evidente no círculo íntimo. Pessoas que convivem com familiares ou parceiros com transtornos apresentam uma tendência significativamente maior de desenvolver comportamentos similares e tão problemáticos quanto, ou até mesmo piores.
Como se tudo isso já não bastasse, atualmente há um contexto que tende a alavancar ainda mais tais transtornos. Problemas como a criminalidade dentro do perímetro urbano, que gera uma sensação constante de insegurança, e o uso desenfreado das redes sociais, que resultam numa pressão social contínua na busca pela felicidade a qualquer custo, também colaboram, e muito, para impulsionar os problemas atrelados à saúde mental.
É fato que o Setembro Amarelo, que aconteceu há dois meses, é um período do ano essencial para que as discussões sobre a temática ganhem maior visibilidade. Porém, ainda estamos defasados quanto ao real entendimento sobre o assunto. A questão atrelada às competências emocionais precisa ser mais explorada e alertada ao público de uma forma massiva. Avanços ocorreram nos últimos anos, mas é preciso compreender de uma vez por todas que a preocupação com a saúde mental é uma tarefa que exige constância. E isso precisa ser aplicado com urgência, nem que para isso seja necessário pintar o calendário do ano inteiro de amarelo.
Rossandro Klinjey é embaixador e cofundador da Educa. Autor de diversos livros e psicólogo com mestrado em saúde coletiva, professor de pós-graduação da Unicamp e PUCRS, é um dos nomes mais relevantes no segmento de saúde mental e desenvolvimento humano no Brasil.