Ações e práticas antirracistas no cotidiano escolar
Por Rafa Pinheiro / Fotos Divulgação
No cotidiano escolar, compreendido como um potente espaço para diálogos e compartilhamentos, inserir reflexões e ações que envolvam (não só) a percepção do racismo, como também práticas antirracistas, são demandas necessárias – e urgentes. Nesse sentido, a escola, vista como um espaço privilegiado para a constituição do sujeito, torna-se um campo de possibilidades para abordar as múltiplas diferenças que atravessam os estudantes, a problematização de uma visão única (colonial e eurocentrada) de mundo, além de estimular pesquisas sobre as culturas africana e afro-brasileira
Nossa sociedade é estruturalmente racista. Linguagens, expressões, acessos, relações, discriminações explícitas ou veladas, violências físicas e simbólicas perpassam a realidade brasileira em diversas esferas e dimensões, seguindo e perpetuando o padrão homogêneo e privilegiado de pessoas brancas em detrimento do apagamento e silenciamento de culturas, diversidades e vivências de pessoas negras. Em resumo, o racismo está em todos os lugares, inclusive, e sobretudo, nas estruturas sociais. Como aponta o advogado e filósofo Silvio Almeida, o racismo é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade.
Nesse sentido, se seguirmos a fala da filósofa e ativista estadunidense Angela Davis quando, em certo momento, ela disse que “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, como desenvolver práticas antirracistas no cotidiano escolar? A partir desta inquietação, na tentativa de abarcar um leque de reflexões e rumos possíveis, trouxemos abaixo algumas falas de profissionais que atuam no âmbito educacional, refletindo sobre as possibilidades de práticas antirracistas nas escolas para compor este especial.
“Antes de pontuar o ‘como?’, é urgente que reforcemos o ‘por quê?’. A escola é uma das principais inserções das pessoas em estruturas sociais. É o lugar de construção de valores, da lida com normas e, em destaque, o contato com o outro (ponto principal nessa questão). Não se pode negar o fato de que a sociedade brasileira se fundou em uma estrutura preconceituosa e excludente; muito disso tentou-se camuflar pelo mito da democracia racial, o que também se reflete em diversos espaços escolares e faz com que o cotidiano do ensino precise urgentemente se ajustar para construir um país mais justo e digno para pessoas cujas etnias levaram a sofrer históricos e sistêmicos ataques.
De acordo com o antropólogo Kabenguele Munanga, para a construção de uma sociedade que enfrente o racismo, temos três pilares essenciais: as leis, as ações afirmativas e – tópico deste texto – a educação. Uma das práticas a se adotar nos espaços escolares trata-se, por exemplo, da revisão da apresentação da história de pessoas pretas. É ainda muito comum e muito atrasado continuar a apresentar o continente africano como se fosse um país – e um ‘país’ única e exclusivamente marcado pela miséria e pela exclusão. Se juntarmos a isso, a representação do legado preto pelo mundo se iniciando a partir da escravidão – como se não houvesse toda uma vida antes de uma das maiores desgraças da humanidade -, temos conteúdos que invisibilizam milhares de saberes, riquezas e aprendizados.
É importante também que as instituições escolares se esforcem para, em seus conteúdos e atividades, capacitarem seus alunos para a análise de representações midiáticas problemáticas, como os milhares que relegam a artistas negros papéis marcados pelo estigma e o estereótipo do que a sociedade colonial convencionou para si o que é ‘ser negro’: indo da marginalização à hipersexualização. É essencial debater o quanto as mídias reproduzem aquilo que é engessado há séculos, mas também há uma urgência em trazer conteúdos que sejam desenvolvidos com e por aqueles que desejam e merecem ter o seu legado celebrado. Não há caminhos de se construir o antirracismo em uma dinâmica exclusivamente dependente de autores brancos (e muitos mantenedores de ideais racistas).
Chimamanda Ngozi Adichie, uma das mais importantes autoras da Nigéria, em palestra para a Ted Talk, trouxe um discurso poderoso sobre “O perigo de uma história única”. Nesse encontro, a artista pontuou como o racismo rouba a dignidade das pessoas, ao tratá-las como seres sem particularidades e, portanto, menos humanas. É também perigoso negar o acesso a uma ancestralidade plural na tecnologia, na literatura, na crença, na forma de organização social. E a escola, junto a toda a comunidade que a sustenta, precisa colocar-se no combate a isso. Será que estamos prontos?”
Isabel Cristina Sodré – Professora de Língua Portuguesa e Redação do Colégio e Curso pH
“Não há resposta pronta. Afinal, Educação é um processo que ocorre em diversos ambientes e é atravessado por várias subjetividades. Porém, considero que a Educação antirracista é composta, necessariamente, por alguns aspectos. São eles: a conscientização do educador sobre si; o caráter investigativo do educador sobre sua prática pedagógica; uma escola composta por diferentes narrativas; a busca por uma Educação Decolonial; e o diálogo.
Um educador precisa, antes de tudo, ser o que deseja ensinar. Uma Educação antirracista passa pela conscientização do mundo em que se está inserido, de si e da sua relação com esse mundo. Não é possível pensar uma Educação antirracista sem essa conscientização e construção.
Nesse caminho é indispensável que os educadores assumam uma postura investigativa na classe, na escola, nos conteúdos e nos objetos do conhecimento trabalhados em suas aulas. Esse caráter investigativo precisa olhar as narrativas por diferentes perspectivas. Não há um único ponto de vista na história, há diferentes personagens construindo os fatos históricos ao longo do tempo e é função do educador apresentá-los aos estudantes. Uma narrativa homogênea, com personagens europeus como protagonistas, é um risco para a construção de uma sociedade diversa e justa.
A busca por uma Educação Decolonial também é importante, ao passo que a decolonialidade entrega o protagonismo aos povos subalternizados e às suas sociedades, que são vistas como produto da Europa.
Por fim, o diálogo. Esse é o caminho para ser antirracista na prática pedagógica. É importante dar visibilidade ao conhecimento e a sujeitos históricos, que foram invisibilizados ao longo dos tempos, trazendo informações e produzindo conhecimento. Sugiro que os educadores se questionem: Onde está a diversidade étnica em sua escola? No cotidiano da sua escola há autores negros ou indígenas que são lidos? Músicas afro-brasileiras ou indígenas são ouvidas? Os estereótipos são reafirmados ou combatidos? Cada educador precisa olhar para si, olhar para o outro e construir uma educação antirracista, juntos em comunhão.”
Manuella Souza Ferraz – Historiadora, pedagoga e consultora educacional da FTD Educação Filial Bahia
“Como em todos os espaços sociais, o racismo também está presente na escola. Reconhecê-lo no cenário escolar é o primeiro grande passo para entender as formas como ele se manifesta – seja de forma explícita e violenta, seja por meio da omissão ou do silenciamento – e quais práticas devem ser adotadas para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.
É possível que a escola seja o primeiro lugar onde muitos jovens e crianças vão falar e ouvir diferentes narrativas sobre como o preconceito e a discriminação atravessam seu cotidiano. Por isso, é importante que a escola ofereça um ambiente seguro e acolhedor para compartilhar essas experiências, refletir sobre elas e propor soluções, em um trabalho conjunto entre diretores, professores, alunos e demais profissionais que convivem nesse espaço.
O ensino antirracista deve perpassar todas as áreas do conhecimento e não ser foco de apenas um componente ou projeto interdisciplinar. Para isso, é importante que as populações negra e indígena estejam representadas de forma positiva em imagens, conteúdos e discursos que transitam no contexto escolar. Sugiro a leitura do livro Ensino antirracista na Educação Básica: da formação de professores às práticas escolares, organizado por Thiago Henrique Mota, professor de História da África na Universidade Federal de Viçosa (UFV). O material está disponível para download gratuito na internet – https://www.editorafi.com/182antirracismo.”
Fabiana Teixeira Lima – Coordenadora de Revisão de Textos no Sistema de Ensino SAE Digital
“Existe uma frase famosa do líder africano Nelson Mandela que diz que ‘Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar’.
É importante os pais e a escola ensinarem às crianças e aos adolescentes sobre respeito e diferenças raciais. Acabar com o racismo estrutural é algo complexo, mas que podemos lidar melhor com as novas gerações, conscientizando-as desde cedo sobre as injustiças e as desigualdades sociais que existem no país.
É na escola que acontecem as primeiras experiências de racismo, visto que é quando as crianças percebem as diferenças e as verbalizam por não terem maturidade cognitiva para filtrar o que falam. É importante, então, que elas saibam que não há problema em serem diferentes, pois as pessoas realmente são diferentes umas das outras. Temos tamanho, cabelos e cores de pele diferentes. E, para que isso não seja visto como um problema, as diferenças devem ser ensinadas e reconhecidas.
Desde pequenas, as crianças aprendem que o céu é azul e o sol é amarelo e, com isso, passam a naturalmente ‘catalogar’ tudo que visualizam. Não podemos ensinar que somos todos iguais, mas sim respeitar as diferenças. Para isso, nada melhor do que recorrer ao aprendizado lúdico, usando histórias, brincadeiras, livros, músicas e filmes, onde essas diferenças podem ser observadas.
E o mais importante: isso não deve ser feito apenas no Dia da Consciência Negra, como apenas um evento isolado. Vivemos em um país multirracial e muito marcado pelo racismo, com a falta de representatividade negra em posições superiores ou em ambientes favorecidos. É necessário mostrar aos estudantes que existem histórias onde o herói é negro, índio, mulher e assim por diante. É uma maneira de mostrar que todos podemos ocupar esses lugares. Isso vai ensiná-los a questionar a presença ou ausência de negros, reconhecer situações de racismo e evitar que ocorram.”
Helen Mavichian – Psicóloga com especialização em psicopedagogia e pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Adotar a educação antirracista na escola significa rever escolhas que dizem respeito não apenas a atividades extracurriculares ou comemorativas. É preciso ressaltar a diversidade nas representações em livros, murais e brinquedos, por exemplo. É um cuidado que começa no espaço, no currículo, nas metodologias e na formação docente da Escola.
A formação profissional de um professor é um espaço que proporciona a construção de novos conhecimentos. Por isso, a educação antirracista pode ser encarada como uma formação continuada, que permite expandir a prática pedagógica e os materiais disciplinares de professores que não passaram por estudos sobre as relações étnico raciais na sua formação inicial.
Pensar em uma educação antirracista, assim, envolve tratar da relação entre duas pessoas, mas também de permitir que todos tenham sua identidade e história acolhidos no espaço escolar.
Para uma atuação coerente, a escola deve intervir na atitude racista, e também mostrar as contribuições dos negros para a química, o português, a matemática. Trazer as inovações científicas e tecnológicas que promovem. É por meio dessa valorização que uma criança deixa de olhar para a outra como inferior.”
Tatiane Santos – Educadora e consultora Antirracista
“Recentemente, participei de um congresso que tratou da etnicidade e relações éticas na escola e a fala de um palestrante foi muito marcante. Infelizmente, não podemos afirmar que racismo não existe. Nossa sociedade é estruturalmente racista. E numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista. Mas como estimular ações e práticas antirracistas no cotidiano escolar?
O primeiro passo é trabalharmos em parceria com a família com base no alicerce principal, no respeito ao outro, independente de cor, religião, características físicas, etc. É necessário partir do princípio de que é necessário consolidar práticas que contribuam para a construção de uma educação antirracista, tornando a comunidade escolar no geral mais consciente e inclusiva. A questão étnico-racial precisa ser desmistificada e incluída no currículo, nas discussões de todas as disciplinas, integrada com o projeto político pedagógico das escolas em todo país.
Por isso, não usamos somente o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, para trabalhar a importância da cultura africana e afro-brasileira para o mundo, mas construímos ao longo de todo o cotidiano de cada ano letivo, como indicado na LDB – Lei de Diretrizes e Base. Cito exemplos: filmes e livros de literatura, principalmente infantil, para mostrar um pouco mais sobre a riqueza. Os conteúdos dos livros de história podem ser utilizados para os educadores falarem um pouco mais sobre o período da escravidão. O incentivo para os alunos repensarem hábitos enraizados que são preconceituosos também é fundamental.
Aproveitamos essas ações para formar crianças que respeitem as diferenças e que estimulem o engajamento. Para a consolidação de uma educação antirracista é preciso promover relações mais saudáveis entre as pessoas, valorizar a história e a identidade dos povos oprimidos e dar recursos para que os estudantes tenham a capacidade crítica de perceber e combater o racismo que atua de forma transversal em todas as esferas da sociedade.”
Renata Correa – Diretora Pedagógica STELLA Escola Infantil e Fundamental
“Desenvolver práticas antirracistas no cotidiano escolar é, antes de tudo, reconhecer que a escola é um microcosmo social composto por pessoas que atuarão como agentes transformadores da sociedade. Portanto, temos nas mãos um valioso e desafiador compromisso com a formação de nossas crianças e jovens.
O trabalho para o desenvolvimento da autonomia intelectual e moral é primordial e deve ser realizado desde – e prioritariamente – na primeira infância, para que o indivíduo cresça reconhecendo e valorizando o conhecimento, aprendendo a fazer, ser e conviver.
Ao abrirmos espaço para o diálogo por meio do acolhimento e ao darmos voz aos sentimentos de todos, ensinamos que o respeito é um valor, e só aprendemos a respeitar quando podemos usufruir da convivência com a diversidade, pois é assim que se compreende que o respeito é inegociável.
Além de assegurar a construção de um currículo intercultural que se comprometerá com uma formação democrática, pois sem democracia não há igualdade racial, precisamos garantir a representatividade por meio da contratação de professoras e professores afro-indígenas para que alunos negros se reconheçam nesses e em outros papéis sociais.
Assim, ao visar o propósito de formar cidadãos críticos, conscientes e éticos, é imprescindível valorizar a diversidade a fim de não dar espaço para o racismo ou qualquer outra atitude preconceituosa, pois, parafraseando Martin Luther King, “nossas vidas começam a terminar no dia em que permanecemos em silêncio sobre as coisas que importam”.
Vanessa Inagaki – Coordenadora pedagógica dos anos iniciais do Ensino Fundamental do Colégio Vital Brazil
“Na sociedade atual, que convive com as vantagens e as desvantagens do paradigma da sociedade contemporânea, onde uma parte considerável dos/as estudantes, de cidades médias e grandes têm acesso a algum tipo de mídia digital, é condição indispensável ao/à docente pensar novas estratégias de ensino e aprendizagem, que valorize e respeite a diversidade dos/as estudantes que a escola pública recebe. O uso de tecnologias de informação e comunicação por parte daqueles/as, reconfigura as formas de aprender, lançando o/a docente no desafio, não de ser refém das TICS e sim pensar novas práticas de letramentos, que repense o modelo canônico da aula e leve em conta o protagonismo desses/as jovens, que em suas comunidades são muitas das vezes, os/as artistas de suas próprias histórias. Pensar novas práticas de letramentos exige de nós, profissionais de educação, não ficarmos presos ao texto escrito como única forma de mediação da realidade, pois é necessário reconhecer a linguagem oral, presente na epistemologia dos povos originários, bem como do povo negro, que veio do continente africanos, assim como dos/das seus/suas descendentes.
A opção por esse gênero discursivo se justifica pela possibilidade de poder ‘montar’ a aula na dinâmica do cotidiano de cada evento educativo, uma aula tem um tempo cronológico que determina o horário que ela começa e o horário que deve ser concluída. Porém o tema da aula, vem da rua, ocupa e transgride a sala de aula, e segue tanto com os/as professores/as, quanto com os/as alunos/as. O passo a passo, como eu disse, pode ser configurado levando em conta as especificidades da cultura local e eu proponho a seguinte forma:
I) Apresentação do autor (biografia) da música Corra (Djonga, 2019), e consequentemente a temática a ser trabalhada, evidenciando aos/as educandos/as os objetivos e as etapas a serem percorridas naquele evento de aprendizagem. É fundamental saber que o saber vem de algum lugar e é enunciado por alguém. Essa pessoa tem origem étnica, tem posição política, tem uma cultura.
II) Produção inicial – uso da oralidade como forma de expressão preliminar dos/as educandos/as, ativando os conhecimentos prévios sobre o tema.
III) Apresentar a música e o videoclipe em mídia digital, podendo ser utilizado tablets ou smartphones para evidenciar aspectos da letra, após a apresentação da obra do artista.
IV) A partir da seleção prévia de trechos da música, abrir hiperlinks para notícias sobre o extermínio de jovens negros no Brasil.
V) Produção final, utilizando a plataforma framehotel.biz, o/a estudante produzirá um ‘quadro’, mostrando a percepção dele/a sobre o clipe e a música.”
Edergênio Negreiros – Escritor e autor da coleção Afroletramento