“Aluno problema”, de quem é a culpa?
Há algum tempo, conversando com uma mãe sobre um novo caso de aluno com dificuldades escolares, ouvi que seu filho era “um grande problema”. E a escola, dizia, apenas reproduzia uma “dinâmica viciada” em que tudo era feito sem cuidado, sem seriedade e sem comprometimento.
Dias depois, na escola para tratar daquele mesmo aluno, escuto da coordenadora que, neste caso, aluno e família “são duas faces do mesmo problema”. “Três anos”, dizia ela, “e, até agora, não conseguiram entender a proposta da escola”. Para a educadora, o aluno trazia vícios pesados de sua casa. De nada valia a escola batalhar para transformá-lo se seu cotidiano familiar era tão complicado.
Apesar das críticas, a cuidadosa senhora concordou em dar todo o apoio ao trabalho que se iniciava. Vasto material me foi gentilmente fornecido, além da boa vontade de toda a gestão escolar, para que pudéssemos resgatar mais aquela ovelha desgarrada.
Já no início do trabalho com o aluno – um adolescente de 16 anos -, soube por ele que, tanto a escola quanto seus pais não sabiam nada de sua vida. “Nem se interessam”, dizia. Para ele, os professores não sabiam dar aulas e a coordenação era “autoritária e ignorante”. Sobre seus pais, pouca coisa pode dizer. “Sem comentários”, despejou com desdém. “Vivem num outro mundo, bem longe do meu”. Era claro: todo aquele martírio escolar provinha da desastrosa parceria entre pais e escola. Ele era vítima de um combinado articuladíssimo de confusão e conspiração.
O transcorrer daquele atendimento não apresentou grandes novidades em relação ao que já vivenciara muitas vezes. Entretanto, uma valiosa reflexão pode ser engendrada de todas aquelas falas.
Escutei, certa vez, que “em todas as relações, surgem sempre novos aprendizados”. Assim, por certo, daquele emaranhado, algo havia brotado. Mas, o que estariam aprendendo, ali, aluno, família e escola?
Hoje, ouso afirmar que havia, sim, uma conquista comum. Aprendizado, sem dúvida. Uma construção coletiva. Mas, certamente, não se tratava de saberes emancipadores ou revolucionários. Longe disto.
O que família, escola e aluno experimentavam e desenvolviam, no intercâmbio daquelas relações, era a arte de se imputar problemas aos outros. Para o menino, tudo vinha de uma escola tosca e autoritária. Para os pais, o filho era o problema de que a escola não dava conta. E a escola, do alto de sua torre de convicções, declarava que a família era a responsável por mais aquele fracasso.
Todos, muito seguros de si, colocavam nos demais as causas de todos aqueles infortúnios. O mal era obra do outro! Dentro da escola, outra instituição invisível ensinava – ou desenvolvia construtivamente, como queiram – o rol de saberes que sempre atribui a outrem as responsabilidades pelo aparecer dos reveses. Aprendia-se a jogar o problema para o outro. Não consegui registrar uma única fala em que alguma das partes trouxesse responsabilidades para si. E a tarefa de recompor a malha ficava muito mais complicada. Havia, ali, uma espécie de conspiração evasiva muito eficiente.
Talvez fosse aquele o único aprendizado de fato (latente, mas efetivo), que a pequena e eventual comunidade conseguira construir. Para onde seria conduzido o já desencantado adolescente eram outros quinhentos. Isto, com certeza, seria minha tarefa. O importante era que todos dormissem tranquilos.
Não foi fácil, como tantas vezes acontece, transformar aquele cenário em algo favorável. Como uma espécie de garimpeiro, tentei descobrir e inventar maneiras e caminhos para tentar fazer daquele jovem um estudante. Talvez tenha conseguido em parte. Isto, só o futuro irá dizer.
Porém, do ocorrido ficou a lição de que conhecimento e busca de realização pessoal estão intimamente ligados. Simbioticamente. O problema é que, em nosso mundo, talvez a sobrevivência imediata – aquela que coloca os outros na linha de tiro para que possamos ser poupados – seja o que vale de fato. Saber é sobreviver no agora. Não existe futuro. A vida é o que viaja até o próximo susto. E que fique combinado: a culpa é toda do outro!
Mas, então, o que buscar depois? E os tais projetos de vida e de mundo? Onde se esconderam repensar e reconstruir? Parece que, nem escola, nem família, nem aluno estavam preocupados com esta parte do problema. Queriam apenas que os outros carregassem os ônus. Uns carregariam a culpa e outros, a árdua alquimia de transformar pedra em ouro.
Por Prof. João Luiz Muzinatti*
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: [email protected] ; www.abcdislexia.com.br