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Guia para Gestores de Escolas

Ao Pé do Ouvido

Matéria publicada na edição 120 | Agosto/2016 – ver na edição online

Diz-se que uma conversa ou pé do ouvido deve ser desenvolvido em tom baixinho, com voz sussurrada, realizada por uma pessoa no ouvido de outra, geralmente confidencial. Algum bate-papo que pode abrigar uma intriga, um cochicho ou então um murmúrio.

Assim, percorri vários lugares, cidades e regiões, colhendo histórias e conversas de um lado e de outro que tinham um teor em comum: expressar maneiras de pensar mais ou menos comuns no ambiente rural ou semiurbano brasileiro de norte a sul do país. Nasceu, dessa forma, um pequeno livro com 25 histórias breves que chegará ao mercado editorial em breve, com um propósito essencial de analisar conteúdos éticos e morais através de situações de alienação, preconceito, exclusão e machismo, criando condições para debates entre pais e filhos ou alunos e professores para uma reflexão e, se possível internalização, de condutas e procedimentos éticos.

Acompanhe abaixo trechos de dois capítulos presentes nesse livro:

SANDRA, A CENTOPEIA

Sandra era uma rica e vaidosa centopeia.

Seus pensamentos pareciam estar sempre concentrados nos seus múltiplos e coloridos sapatos e na subserviência de Maricota, pequena formiga e sua criada. Para Sandra, o prazer maior da vida consistia em perfilar pelos canteiros e colher de seus múltiplos moradores os comentários elogiosos sobre sua graça, seus sapatos, sua riqueza. Não poucos entre esses moradores tentavam trazer Sandra à realidade do lugar, a beleza das flores brindadas pelo orvalho, o encanto dos mil verdes que se deixavam embalar pelo vento. Tarefa inútil, pois para outros pensamentos jamais se desviavam os de Sandra senão seu luxo, sua riqueza, seus sapatos. Mas, sobrecarregada de tanto esforço, infeliz pelas ácidas críticas de Sandra, descuidada de si mesmo para tanto cuidar da patroa, Maricota não resistiu ao inclemente inverno e foi levada pela gripe.

Desesperada por não encontrar seus sapatos, humilhada pelos muitos pés descalços, Sandra saiu a esmo pelo jardim. Foi então que seus pés descobriram a sutileza da grama úmida, seus ouvidos perceberam a carícia dos ruídos múltiplos, seus olhos encheram-se de cores jamais imaginadas e seus pés libertos sentiram a carícia do orvalho. Descobriu que a vida não é uma prova, não é degrau. Percebeu que viver não é singelo passo no caminho, muito menos um prelúdio para o incerto paraíso futuro. Percebeu, finalmente, que o verdadeiro paraíso que está no aqui e no agora.

Sandra surpreendeu-se com a vida, descobriu o sussurro do amor, encontrou finalmente a tosca e singela moradia da verdadeira felicidade.

UM OLHAR PARA DENTRO:

A SABEDORIA EM SE DESCOBRIR ENCANTO E BELEZA NO AMANHECER E NO ANOITECER, NO BARULHO DO MAR E NOS CANTOS DOS VENTOS. A FELICIDADE PODE SEMPRE ESTAR ONDE A COLOCAMOS, MAS MUITAS VEZES NÃO A COLOCAMOS AO ALCANCE DE NOSSAS MÃOS.

O TATÚ AZARADO

Quando o tatu Zacarias se fez homem, resolveu se enturmar. Sabendo que grande parte dos machos humanos adora futebol, economizou alguns trocados e foi ao futebol, sem sequer imaginar que besteira seria essa. Sentou na geral e querendo se fazer “povão”, mal o jogo começou e em plenos e humanos pulmões berrou: CORINTHIANS, CORINTHIANS, CORINTHIANS. Não chegou a se sentar e vaiado pela torcida alviverde levou algumas cacetadas e cusparadas e foi salvo pela Polícia que, julgando-o louco, atirou-o para fora do estádio.

Não desanimou e na semana seguinte voltou à geral, ainda mal curado da penúria e da surra. Disposto a não mais errar foi só entrar em campo os jogadores que, em plenos e humanos pulmões, berrou: PALMEIRAS, PALMEIRAS, PALMEIRAS. Chutado, cuspido e apedrejado foi quase esmagado pela torcida Gaviões da Fiel. Salvo por cuidadosa policial, foi curado e colocado, mais uma vez, para fora do estádio. Não desanimou.

Não tendo mais dúvidas sobre a idolatria humana, catou os restos dos trocos recebidos e, mais uma vez foi ao jogo, disposto a não mais errar. Ficou em pé no meio da multidão e foi só o jogo começar e começou a gritar: ALVIVERDE, ALVIVERDE, ALVIVERDE. Novos chutes, blasfemas e pontas-pé e a própria torcida tricolor Independente o atirou para fora do estádio.

Doido e Doído, triste e machucado envolveu-se pela tal de depressão por não compreender essa estranha bicharada que, com deslavado orgulho se autodenomina: ESPÉCIE INTELIGENTE.

UM OLHAR PARA DENTRO:

NÃO EXISTE MANEIRA MAIS COMPLETA DE SE SENTIR VERDADEIRAMENTE DIGNO SENÃO ABANDONANDO A PROCURA DE MODELOS E A CÓPIA DE PENSAMENTOS, AÇÕES E GESTOS PADRONIZADOS. NADA É MAIOR QUE A CONSCIÊNCIA PLENA DA INDIVIDUALIDADE E A DESCOBERTA DA GRANDEZA EM CURTIR A ESSÊNCIA EM SER O PRÓPRIO “EU”.

CELSO-ANTUNES-miniatura

Celso Antunes tem bacharelado e licenciatura em Geografia. É mestre em Ciências Humanas pela USP e é considerado um grande formador de opinião no mundo da educação. Tem mais de 280 publicações e suas obras forma traduzidas pra mais de seis países. Celso Antunes também ministra palestras em diversos países como Argentina, Uruguai, Peru, México, entre outros. 

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