Carta aberta a minha filha
Querida Júlia.
Dentre as muitas conversas que costumamos ter, encantam-me sobremaneira aquelas em que a vejo argumentar sobre a vida, o humano e o nosso mundo. Com apenas 20 anos, revela lucidez e segurança. É séria nos seus posicionamentos e costuma respeitar seus interlocutores. Muito arrojada, sempre teve um quê de preocupação com as pessoas, principalmente aquelas que sofrem algum tipo de injustiça. Durante sua adolescência, não foi raro vê-la envolvida com problemas particulares de seus amigos, e posso afirmar, sem dúvida nenhuma, que gosta de comprar brigas alheias. Do meu lado, sempre procurei valorizar suas iniciativas e raramente quis colocar ideias prontas em sua cabeça. No máximo, trago-lhe questões novas – além daquelas que seu curso de Relações Públicas e a nossa mídia já colocam. Porém, talvez pelos últimos comentários que me vem trazendo, em reflexões sobre a tal “dignidade humana”, decidi lhe falar abertamente do que sinto e do que penso – que pode ser uma ajuda em seu movimento de construção profissional e pessoal.
Depois de muita propaganda minha, tive o prazer de vê-la debulhar, com gosto e emoção, o maravilhoso Olhai os lírios do campo, do queridíssimo Érico Veríssimo. Obra que nos deixa sempre apaixonados pelo estilo da narrativa e o enorme espírito humano de seu autor, vejo que o texto a tocou profundamente – como a mim, décadas atrás. Vejo-a falar nos personagens como gente conhecida nossa: pessoas que parecem estar aí pela vizinhança – e talvez estejam, mesmo. E, como sempre fazemos (com livros, filmes e peças que vemos juntos), hoje a reflexão parece estar à flor da pele. Desde o final da leitura, vejo-a comentar, se indignar e trazer propostas sobre a Saúde em nosso país – já que o Érico trata da medicina e do trabalho dos profissionais junto às classes mais desassistidas. E o que você me diz? Fala em “socialização da medicina”.
Você me traz uma fala – retirada de um outro texto – na qual o ponto mais contundente é a afirmação de que, “no dia em que a medicina estiver socializada, só seguirão a profissão médica os que tiverem verdadeira vocação. Veríamos médicos com espírito médico . . .”
Cuidado! Talvez pelas maneiras como a nossa classe média trata esta questão, e pela verdadeira enxurrada de absurdos que nossa mídia profere, sua fala e seus argumentos venham a ser execrados e você se sinta meio excluída (qual herética em meio a verdades absolutas). Porém, aqui está outro louco, para o qual a cara feia e a reprovação das pessoas não constituem nenhuma tragédia. E, apesar de comungar com suas ideias, vou ainda mais longe. Afinal, você não vai ser médica, e talvez a medicina não seja o único campo em que a justiça social possa ser evocada. Assim sendo, permita-me, querida.
Você está, assim como milhões de jovens da sua idade, preparando um futuro. Um futuro seu? Só seu? Está estudando, viajando pelo mundo, aprendendo, descobrindo . . . Porém, lhe pergunto: você é o centro dos investimentos pessoais e até econômicos que vem fazendo? Ainda mais: é razoável que assim seja? A quem pode interessar seus estudos e sua futura profissão? O grande executivo que a entrevista – e para quem você capricha no visual, no inglês e no discurso – é o único interessado na sua competência e na sua futura excelência?
Talvez não tenha reparado, mas o varredor de rua que limpa o caminho por onde você anda rumo à realização profissional, o auxiliar de cozinha que capricha para que você coma bem e se fortaleça em sua epopeia oxalá vencedora e, até mesmo, o pedinte que deixa uma porcentagem do real que recebe no farol como imposto indireto, estão todos financiando seus estudos e sua preparação para os flashes do sucesso. A palavra socializar pode representar muito mais do que a velha e alquebrada ideia de distribuir o que uns poucos bem dotados (social e economicamente) produzem àqueles que nada tem. Isto é falso! Socializar pode ter o significado de devolver a quem de direito, entregar a quem pagou aquilo que lhe pertence. Socializar pode ser o mesmo que fazer com que a ciranda se complete – e não permaneça pensa e desequilibrada.
Então, se me permite, seu anseio – nobre e justo – não se aplica apenas aos médicos. É certo que tratam diretamente da saúde e tem como obrigação central minimizar o sofrimento das pessoas – e não de algumas poucas pessoas. Sua profissão, a minha (e de todas as pessoas, por que não?) também são vias de justiça e injustiça, liberdade e opressão, esclarecimento e enganação. Se a conta bancária cada vez maior pode ser o desejo de muitos futuros profissionais como você – e sei que não há crime em pensarem e quererem isto -, a construção de um mundo menos injusto pode ser também uma aspiração válida. Um outro escritor muito querido, o Vinícius de Moraes, disse que “para viver um grande amor é preciso saber ganhar dinheiro com poesia, não ser um ganhador”.
Assim, ainda que suas leituras possam ser de altíssimo nível e seus professores, alguns dos melhores do país, quem sabe não seja interessante olhar para o texto escrito diariamente por essa gente que sofre, acredita numa vida mais digna e num futuro talvez tão gostoso quanto o que programa para si. Quem sabe sua competência possa construir não apenas uma boa conta bancária (para você), mas um saldo social menos indigno como o que temos visto? Como seu trabalho poderá criar riquezas que sejam apropriadas por mais gente além de você e de seus diretores? E, principalmente, que rumo pode dar a seus estudos para que tal via seja possível? Será que exagero nos questionamentos?
É para pensar, filha, como sempre. Sua vida é escolha sua. Seu mundo será sua obra. Aqui estão apenas mais algumas das provocações deste velho companheiro das horas de afago e atenção. Questões! Obstáculos às certezas. Afinal, se todos aqueles que não tem vez pudessem escolher, certamente optariam por mudar radicalmente as verdades das mídias, das religiões e das instituições que procuram explicar o mundo dado. Por falar nisso, quando tinha sua idade, na universidade, li um livrinho intitulado Teses sobre Feurbach, onde o autor (K. Marx) dizia que “os pensadores se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras; mas o que importa é transformá-lo”.
Beijo do Pai!
João Luiz Muzinatti – Março de 2015
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: [email protected] ; www.abcdislexia.com.br