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Guia para Gestores de Escolas

De aprendizados e mudanças

“Onde fica guardado todo esse saber humano, que também faz o mundo se transformar a cada dia?”

Engraçada é a vida. Desde cedo, vasculhamos, desbravamos e questionamos este mundo, tentando descobrir essências, verdades . . . aquilo que possamos considerar perene. Nosso convívio familiar e os mundos acadêmico e profissional são exercícios ininterruptos dessa busca. Só que essa estrada parece nunca terminar. Respostas mágicas, religiosas, científicas. Tudo parece ondular em nossa percepção, e o chão firme e seguro – vislumbrado e sonhado a cada passo –  é fugaz. E apesar de as certezas esmaecerem a cada novo aprendizado, costumamos negar a vida real, acreditando sempre que certa verdade, uma hora ou outra, nos cairá no colo, qual regalo divino.

Eu tinha dezessete anos quando fiz minha primeira grande viagem. Vivendo uma vida simples em Rio Claro, no interior do Estado de São Paulo, só havia experimentado saídas de um ou dois dias para participar de jogos ou festivais de música popular. No mais, minha vida era pura contemplação do universo doce e seguro de ruas, rostos e conversas com a gente conhecida da cidade. Mas, num janeiro inesquecível, fui bem mais longe. Saímos, eu e mais dois amigos do colégio, para uma viagem de duas semanas ao Rio.

Excitante em todos os sentidos, aquela experiência marcou pelas paisagens, lugares novos e pessoas que conhecemos. Pequenas aventuras românticas, noitadas em bares movimentados e a praia nos fascinaram. Para sempre ficará guardado o show em que vi, bem de perto, o maravilhoso Vinícius de Moraes cantando e declamando que “a vida vem em ondas, como o mar”. Foi um presente a três jovens bem comportados e estudiosos. Porém, o aprendizado maior ainda estava por vir.

Ao chegar, ansioso por contar aos amigos as aventuras vividas, deparei-me com algo novo. A cidade parecia diferente. No trajeto da estação rodoviária até minha casa, e até mesmo na rua em que morava, notei que havia coisas diferentes. Árvores podadas, uma casa antiga demolida, um bar de parede azul clara agora era bege, e a lojinha defronte à minha casa exibia uma bela e enorme vitrine.

Certas coisas são imperceptíveis a muitas pessoas, mas aquilo me espantou. Isso nunca havia acontecido! De repente, muita coisa diferente! Fora coincidência? O que explicaria aquele novo cenário?

Aos poucos, fui criando uma explicação racional e percebendo que o tempo que havia ficado ausente fora bem maior do que jamais havia acontecido. As mudanças aconteceram vagarosamente enquanto eu viajava. Porém, ao contrário do que sempre ocorria, daquela vez eu só percebera quando tudo já se havia consumado. Lembro-me de que falei a uma amiga, naquela mesma noite, que “a cidade era como a vida do Vinícius no ‘Dia da Criação’: vinha em ondas”.

Anos mais tarde, já como estudante de Filosofia, aprendi sobre um pensador pré-socrático chamado Heráclito, que dizia que “o sol não apenas é novo a cada dia, mas sempre novo, continuamente”. A mudança, afirmava ele, é a única certeza possível. O fogo é princípio do mundo, pois a tudo transforma – destrói e reconstrói, num ciclo interminável, onde nada é de fato. E mais ainda: a contraposição dos opostos é que garante aquilo a que chamamos harmonia. Aquela descoberta fantástica aos 17 anos, que me inquietou e fez brilhar os olhos da minha amiga, já havia sido discutida vinte e seis séculos antes. E eu que estudava tanto …

Muito se passou em minha vida. Virei professor, e passei para o outro lado.  Porém, depois de décadas dedicadas à pretensão de fazer com que meus estudantes aprendam, deparo-me com a inquietante realidade de que ainda os ensinamos que tudo é como é. Se, naqueles idos dos anos setenta, vivendo numa ditadura, aprendi que não podemos fugir de verdades absolutas, temo que ainda façamos o mesmo.

Nas nossas casas, nas escolas – “templos do saber”: creio já ter ouvido muitas vezes isto – ou até nas mesas de bares, professamos, ensinamos e, o que é pior, vislumbramos e esperamos pela verdade. Aprender é um jogo de certo e errado, no qual premiamos a certeza, assim como condenamos a insegurança ou a dúvida. (Era isso o que eu aprendia antigamente – e estudava cada vez mais e mais.) Da mesma forma como eu deixava minha mãe orgulhosa quando recebia elogios do colégio por fazer tudo direitinho, hoje, ainda premiamos os saberes catalogados. E apresentamos tudo isso como ciência. E justo a ciência que sempre foi tão rebelde e crítica – Galileu, Bruno ou Einstein não nos deixam mentir. E a própria filosofia, que nunca foi santinha – ou melhor, talvez até tenha sido santinha quando apresentou Sócrates, Platão ou Agostinho caçando princípios por toda parte -, já teve gente como Nietzsche, que distribuiu marteladas e impropérios, dizendo que a busca dos absolutos nega essa vida de carne e osso. Onde fica guardado todo esse saber humano, que também faz o mundo se transformar a cada dia? Às vezes, penso na sensação de nossos alunos que, sentindo na pele um mundo contraditório e cheio de conflitos, acabam aprendendo que existe outro, sempre definido, organizado, em busca do “bem”.

Numa tarde quente, há muitos anos, um sol eloquente de verão me iluminou ruas e paredes, mostrando que a vida é bem maior do que aprendera até então. Era o fogo a destruir e criar. Um fogo que queimava cada segundo vivido e a tudo transformava. Naquele momento, aprendi que a vida poderia ser linda e que meus horizontes não teriam limites.

Hoje, trabalhando para que outros jovens possam galgar a vida mais plena e livre possível, sinto uma angústia muito grande, pois não dou conta, o tempo todo, de perceber e corrigir, as visões de mundo assertivas e dogmáticas que posso estar passando. E não consigo me esquecer das palavras do velho mestre de Éfeso que, dois mil e seiscentos anos atrás, já nos advertia que “quem não esperar o inesperado, nunca se descobrirá”.

Por Prof. João Luiz Muzinatti*

 
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Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações[email protected] ; www.abcdislexia.com.br 

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