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Guia para Gestores de Escolas

A educação democrática: relato de uma experiência

Meus filhos choraram. Até aí nenhuma novidade. Filhos chorarem não deixa ninguém surpreso. Mas acreditem se quiserem, meus filhos choraram porque não queriam se despedir da escola no dia da formatura. Quantos pais, nessa crise generalizada da educação no Brasil, têm o privilégio de consolar seus filhos e dizer que um feliz ciclo se fechou e novos se abrirão. Em um momento em que pesquisas revelam que a maioria dos educandos está insatisfeita com suas escolas, meus filhos não queriam ir embora.

A DIFERENÇA

Enfim, eram felizes e, a meu ver, essa felicidade é o primeiro passo rumo a uma construção legítima do processo de aprendizagem.  Mas, afinal, o que tem essa escola de diferente, o que teria gerado esse sentimento em extinção em grande parte dos bancos escolares.

SINGULARIDADES

Em primeiro lugar, é essa minha visão, não só enquanto pai, mas como sociólogo, jornalista e educador na área da chamada inclusão social e escolar da pessoa com deficiência, a Politéia respeita os seus educandos e leva em consideração desejos, interesses, necessidades e dificuldades, sempre singulares.

TRILHAS METODOLÓGICAS

Para quem não conhece, sempre voltadas para o que são chamadas de trilhas metodológicas, a escola atua com áreas do conhecimento (não disciplinas), que são Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, Ciências Humanas, Artes, Teatro e Educação Física.

DEMOCRACIA

E essas trilhas são semestralmente escolhidas democraticamente pelos educandos e educadores. Também é proposto (pelo menos era na época) que cada educando escolha e desenvolva um projeto individual de pesquisa, além do GEA (Grupo de Estudos Aprofundados) e das oficinas extras.

CONSTRUÇÃO DO APRENDIZADO

Joyce entrou no Fundamental II “odiando” matemática e está saindo “gostando muito”. A cada semestre, a escola e/ou os próprios educandos propôs vários GEAs. Em um dos últimos, ela optou por fazer o de matemática aprofundada, não ficando atrás do que supostamente todos da chamada escola tradicional aprenderam, mas com uma diferença significativa. Ela própria foi construindo um singular processo de aprendizagem contínua.

Ainda em relação à matemática, segundo a avaliação da própria escola, no último semestre (2013), Joyce se dedicou à questões vinculadas ao Ensino Médio. Na língua portuguesa, também de acordo com a avaliação na Politéia, ela ficou no esperado para uma adolescente de sua idade, sobretudo na escrita.

CIÊNCIAS HUMANAS

O mesmo ocorreu no caso das Ciências Humanas. Participou de todas as atividades e se envolveu concretamente no que foi debatido em sala de aula, tais como questões relativas à Monarquia, República, além de temas mais complexos como o funcionamento do próprio sistema capitalista. Isso sem falar do Movimento “Diretas Já” no Brasil, entre outros.

Nas Ciências Naturais, sempre esteve envolvida em todas as experiências realizadas em sala de aula. Não quero me estender muito mais em relação às áreas do conhecimento já que, a meu ver, o mais importante é que ela foi construindo seu próprio ritmo de aprendizagem ao longo desses quatro anos. Joyce foi para o Ensino Médio com interesses definidos, sabendo que precisa estudar e, o que é melhor, com desejo de pesquisar e buscar seu caminho.

AUTONOMIA E PROJETOS

Autonomia e responsabilidade. São esses alguns dos principais pilares da Politéia. Em relação aos projetos individuais, a primeira escolha da Joyce foi o filme Percy Jackson, que trata da Mitologia Grega. Significou uma feliz intersecção entre um livro que estava na moda (o que despertou seu interesse pela leitura) e a própria trilha metodológica escolhida democraticamente naquele ano, que foi justamente a da Mitologia Grega.

Joyce continuou, no ano posterior, com os temas maus tratos e cuidados dos animais. O motivo dessa escolha foi extra-escola. Nesse período, nós já morávamos na Serra da Cantareira, pulmão verde localizado bem ao lado da Capital de São Paulo. Ao observar a enorme quantidade de cachorros abandonados na Estrada de Santa Inês, que é o caminho para nossa casa, Joyce passou a se interessar pelo tema.

PRIMEIRO LINK

No ano seguinte, em seu primeiro link, ficou sabendo do cachorro Kudriakva, da raça Laika, que foi lançado ao espaço pelos russos, morrendo no transcorrer da viagem. Resultado: sua próxima pesquisa foi a corrida espacial, o que gerou novos links durante mais esse percurso escolhido por ela.

CONSCIENTIZAÇÃO

Sabemos que é impossível tratar desse tema sem nos depararmos com a Guerra Fria entre o capitalismo e o chamado socialismo real, ou seja, através de uma decisão individual, ela se viu frente a frente com diversas áreas de conhecimento: Política, Sociologia, História, Geografia e Ciências Naturais, entre outras.

MAFALDA

Na sequencia, em mais um link, Joyce leu algumas tirinhas da personagem Mafalda sobre a corrida espacial e a Guerra Fria, entrando também para o campo da literatura e da interpretação de texto.

Descobriu também que o argentino Quino criou sua personagem como uma forma de questionar ditadura militar em seu país, embarcando nos regimes autoritários da América Latina, colocando um foco todo especial na brasileira (1964-1984). Enquanto isso, a educadora das ciências humanas tratava justamente de temas vinculados a seu projeto e a dos outros educandos.

OUTROS LINKS

Após embarcar nessa viagem, emergiu uma dúvida: qual link fazer? Pesquisar a ditadura militar no Brasil ou retornar ao mundo animal? Em um primeiro momento, optou por pesquisar a Biologia Marinha. Além da pesquisa em si, criou um vídeo e chegou a pensar (pensa até hoje) em uma possível profissionalização no futuro.

MANIFESTAÇÕES POLÍTICAS

Já em seu estudo posterior, voltou a se aventurar pelo complexo campo da política contemporânea, ao ser impactado pelas manifestações populares que surpreenderam o Brasil a partir de 11 de junho de 2013. Temas como capitalismo e socialismo, além dos espectros políticos da esquerda e direita e suas vertentes, passaram a fazer parte de sua realidade nesse final de ciclo na Politéia.

INCLUSÃO: DO QUE ESTAMOS FALANDO?

Todo o ser humano tem suas dificuldades e seu tempo de aprendizagem. Não pelo seu CROMOSSOMO 21 a mais, mas por conta de que cada pessoa é única e aprende de um jeito diferente, a trajetória do Thiago foi distinta. Fazendo aqui um pequeno parêntese, vivemos hoje em dia no que é chamado de inclusão.

E a Politéia, nesse contexto geral supostamente inclusivo, tenta romper com o pressuposto de que nossa sociedade é dividida em dicotomias excludentes, separando as pessoas em “normais/iguais” ou sem deficiência de um lado e “anormais/diferentes” ou com deficiência de outro.

PROJETOS SINGULARES

Não é meu objetivo me deter muito nessa indispensável e necessária polêmica: a de que a inclusão que nós temos hoje, na maioria das escolas, não é a que queremos ou mesmo desejamos. Esse é um dos temas, inclusive, que trabalho em minha vida profissional. Quero me dedicar aqui a revelar a trajetória do Thiago.

Ele ensaiou seus primeiros passos literalmente com um interesse que era só dele. Apesar de muito comum entre as crianças/adolescentes de sua idade (12 anos), escolheu pesquisar os super-heróis das histórias em quadrinhos. Quer maneira mais prazerosa para vivenciar o mundo da leitura, do letramento e da língua portuguesa?

INTERESSE PELA MÚSICA

Já no semestre seguinte, entrou com tudo em uma dúvida sua. Da mesma forma que o pai, foi se revelando um legítimo roqueiro. E uma das suas perguntas mais frequentes foi: “do que morreu esse ou aquele astro do rock?” Optou então por pesquisar, junto com Gianluca, seu grande amigo e também amante do rock, o polêmico e espinhoso mundo das drogas.

Na sequência, foi direto a um dos temas que mais lhe interessou (e interessa até hoje): a História do Rock. Esse tema merece um capítulo especial. Uma das suas principais dificuldades foi a de entender o que é o tempo, tanto histórico como pessoal (ontem, hoje e amanhã). E até para pensarmos a lógica matemática é indispensável saber o que vem antes e depois, ou não?

NOÇÃO DE TEMPO

Pesquisar a história do rock, para o Thiago, foi fundamental. Vida e morte; períodos históricos e suas vertentes políticas e sociais; comportamentos sociais e costumes, entre muitos outros temas, estiveram implícitos nesse estudo. Só para citar um significativo exemplo: hoje Thiago sabe que Bob Dylan é um cantor que começou a sua carreira em 1960 e escreveu letras contra a guerra do Vietnã, vivendo ainda em um momento ímpar da historiografia mundial: o mundo hippie e as bandeiras paz e amor, além de toda uma rebeldia juvenil.

O MUNDO DAS ARTES

Outra adoração dele sempre foi o cinema. Então, seguindo em sua trilha, escolheu a sétima arte para pesquisar, mas precisamente o filme Avatar e seu mais avançado super-herói: o personagem Jake Sully, que lutou contra a destruição da natureza e o massacre contra o povo natural do Planeta Pandora, uma alusão à dizimação dos povos indígenas na chamada modernidade.

FICÇÃO E REALIDADE

Outro aprendizado dos mais significativos: entender a diferença entre ficção e realidade. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Do ponto de vista da aprendizagem, a ecologia esteve presente em toda sua trajetória. Eu descobri inclusive que, no México, uma nação indígena estava sendo dizimada por conta da exploração de minério de uma empresa canadense.

O CINEMA

No filme “Avatar”, o tema tratado é exatamente esse: o da exploração de uma espécie de pedra preciosa. Conversei com ele sobre essa suposta coincidência e escrevi para o educador André, seu orientador nesse projeto. André então perguntou a ele sobre o México e verificou que era de seu interesse inserir essa realidade em seu projeto sobre a ficção. Thiago também fez um paralelo com a destruição da Amazônia e de toda sua diversidade. Nada mais apropriado e necessário para os dias de hoje.

Seguindo em frente, Thiago optou por pesquisar o filme “Uma Noite no Museu”, em que personagens históricos de cera são vivificadas à noite. Nasceu daí uma verdadeira linha do tempo passando por diversos e distintos períodos históricos. Thiago entrou para os mundos dos ditadores Gengis Khan e Ivan, o Terrível, além do imperador Napoleão Bonaparte, do mafioso Al Capone, dos presidentes americanos Ted Roosevelt e Abraham Lincoln, entre muitos outros.

ENSINO SIGNIFICATIVO

O “Uma Noite no Museu” colocou ficção e realidade mais uma vez lado a lado, além de que sua pesquisa envolveu Ciências Humanas (História, Geografia e Política), Artes, Matemática, Língua Portuguesa (leitura e interpretação de texto) e Ciências Naturais, mais precisamente a Biologia, já que o filme trata de temas como o DNA.

AS CIÊNCIAS HUMANAS

Continuando em sua trilha, seu novo projeto foi o estudo sobre o lendário Robin Hood. Temas exaustivamente tratados pela educadora da área de Ciências Humanas, como monarquia e democracia, estiveram presentes nesse seu estudo que, mais uma vez, uniu ficção e realidade. Thiago descobriu que Robin Hood é lenda e, só para citar um exemplo, o Rei Ricardo Coração de Leão existiu de fato.

MÚSICA DE PROTESTO

No último semestre de sua trajetória pela Politéia, a língua portuguesa pediu passagem quando Thiago leu e interpretou diversas letras musicais de rock de protesto. Começando por Raul Seixas, passou pelas bandas Legião Urbana, Titãs e Ratos do Porão.

AVANÇOS E LIMITES

Nesses quatro anos de Politéia, aprendi na prática o que já defendia em meus estudos teóricos: ninguém deve acompanhar ninguém e cada educando deve ser comparado a si mesmo, além de todo processo de aprendizagem ser sempre singular e insubstituível. Minha filha dita “normal” não aprendeu do mesmo jeito que os outros também catalogados como “iguais”. E o Thiago, estigmatizado, histórica e culturalmente, como “anormal”, também não aprendeu da mesma forma que outros igualmente rotulados negativamente como “diferentes”.

O APRENDIZADO É ÚNICO

As perguntas que ficaram foram: Como não só respeitar, mas investir de fato na singularidade de cada educando, criando um senso de coletividade e mutualidade entre eles? Como criar estratégicas para investir qualitativamente em cada singularidade? Como criar significados, rompendo com o pressuposto de que ensinar é impor, de cima para baixo, uma enxurrada de conteúdos ditos como necessários para todos?

O QUE É AULA?

Mas o que significa, na prática, não dar a mesma aula para todos? Ou seria não dar mais aulas? Não seria levar em consideração cada singularidade, independente da condição do educando? Como não estabelecer mais hierarquias valorativas entre saberes? Com certeza, não é uma tarefa das mais fáceis.

DESAFIO

Como respeitar e investir nos tempos diferentes apenas com um educador em sala de aula? Que tipos de vínculos é possível criar entre os educandos e entre os educandos e os educadores? Como garantir o aprendizado gerado em sala de aula seja compartilhado por todos, cada um com sua singularidade? Como pensar um processo de aprendizado que leve em consideração o princípio da escuta?

GRANDE AVANÇO

Mesmo com esses dilemas, acredito que a Politéia esteja anos luz à frente no que chamamos hoje de inclusão. Não se trata de incluir, ou melhor, colocar para dentro, apenas as catalogadas pessoas com deficiência e sim levar em considerações todas as singularidades, interesses, necessidades e dificuldades. E esse é o caminho trilhado pela Politéia.

ASSEMBLÉIAS

Faltou falar de duas ferramentas utilizadas pela Politéia que devem receber aplausos e elogios. Estou falando da Assembléia de alunos e dos Fóruns. Palcos de tomadas de decisão e de resolução de conflitos respectivamente, considero que Thiago e Joyce exercitaram na prática a democracia participativa, o processo de escolha e de tomadas de decisão, indo muito além da tradicional democracia representativa.

AGRADECIMENTOS

Como garantir a palavra e a fala de todos, no campo da heterogeneidade? Esse é um tema dos mais interessantes a ser pesquisado, mas que eu deixo para outra oportunidade. Por esse motivo, entre muitos outros, agradeço à Politéia esses quatro anos de fundamental II.

A Joyce construiu seu próprio processo de aprendizagem e, o que é melhor, acredito que ela tenha todas as condições de acompanhar, de uma forma autônoma e consciente, todos os desafios que terá no Ensino Médio. E quanto ao Thiago, aposto na possibilidade de que as sementes plantadas pela Politéia irão germinar belos e promissores frutos na sequência de seus estudos (autonomia e vontade de aprender). No próximo capítulo tratarei justamente desse tema extremamente espinhoso: o Ensino Médio.

Guga Dorea é Jornalista e Sociólogo. Atua hoje como educador em cursos de Pós – Graduação na área da Inclusão Social pela UNISED, além de criador do projeto “Conectando Diferenças: oficina de escrita criativa” para Pessoas com Deficiência ou dificuldades de aprendizagem e de  participar do Grupo de Estudo sobre a Filosofia da Diferença da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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