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Guia para Gestores de Escolas

Elucubrações intempestivas de um educador

Umas das mais inquietantes preocupações de quem se diz educador é a “apatia de nossos jovens”. Sejam alunos dos ensinos fundamental e médio – na chamada educação Básica – ou, mesmo, estudantes de nível superior, a constante reclamação de professores e coordenadores gira em torno do fato de não haver mais interesse. Aulas, estudos em casa, leituras de livros e textos preparatórios para as aulas, pesquisas. Tudo o que se espera (minimamente) dos nossos alunos parece ser muito, muito difícil de acontecer. As atividades escolares, dentro de seu rol de interesses, parecem ocupar as últimas posições – e isto, levando-se em conta que são imprescindíveis para que possam receber os tão almejados diplomas, portas de entrada para o mundo produtivo. De “mal necessário”, estudar parece estar se transformando – para eles e, até, para nós – em mal desnecessário. Reuniões pedagógicas, conversas com famílias, trabalhos específicos com outros profissionais – estes ligados também à saúde – nos têm revelado que o caminho talvez não seja exatamente esse. Mas, então, o que falta? Ou, melhor, o que pode estar acontecendo e não percebemos? É óbvio que, se tivesse aqui uma solução, já a teria ofertado ao nosso mundo da Educação. Tentei, em outras jornadas, buscar saídas, e sei que é complicado. Porém, quem milita na Educação vive acostumado a cair e levantar-se o tempo todo. Então, assim sendo, aqui vai outra viagem pelas ideias. Afinal, pensar não dói tanto.

Acredito que causas de problemas aparentemente insolúveis – como este, na Educação – vivam sempre atreladas à nossa dinâmica social e cultural, porém camufladas, pois, se estivessem escancaradas, seriam alvos fáceis. E, dentro desta lógica, tento buscar pistas sobre elas, não no tempo presente – pois estão escamoteadas -, mas em outros momentos da história. E, é claro que, como não é possível indagar o futuro, resta-nos o passado. E, nessa empreitada, dirijo-me ao final do século XIX, e vou aterrissar no pensamento de um sujeito que, vivendo nos oitocentos, parecia ter uma antena superpotente sintonizada bem nos nossos dias. E falou – naquela época, intempestivamente – sobre um tal “último homem”.

Apesar de bastante criticado, principalmente por quem nunca o leu – prática, essa, muito comum para aqueles que sempre ouvem falar, mas nunca conferem, de fato, as coisas -, Friedrich Nietzsche escreveu muito acerca de nossa condição de humanos; e acredito que seja impossível analisar nosso tempo virando-lhe radicalmente as costas. E, dentre as suas mais clássicas constatações está a de que o homem é como “uma corda esticada entre o animal e o além do homem – tradução, esta, que prefiro usar para o termo alemão Übermensch, ao invés do já tradicional ‘super-homem’ “. E o que pode estar querendo nos dizer com esta afirmação? Certamente não nos coloca como animais, apenas. Porém, uma corda, aqui, separa duas realidades, e certamente nos julga superiores aos demais animais, porém menos do que aquilo em que ainda podemos nos transformar. E, no prólogo do seu famoso livro Assim falava Zaratustra, lança-nos a ideia daquele que seria o derradeiro ponto, a extremidade final dessa corda: o “último homem”. Vejamos como nos fala.

““[…] Chega o tempo do homem mais desprezível […] Eu vos mostro o último homem. […] A terra se tornou pequena  e sobre ela saltita o último homem, que torna tudo pequeno. […] ‘Nós inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, e piscam os olhos. Abandonaram as regiões onde é duro viver […] Adoecer e desconfiar consideram perigoso: a gente caminha com cuidado. Louco é quem continua tropeçando com pedras e com homens! Um pouco de veneno de vez em quando: isso produz sonhos agradáveis. E muito veneno no final, para ter uma morte agradável. A gente continua trabalhando, pois o trabalho é um entretenimento. Mas evitamos que o entretenimento canse. Já não nos tornamos nem pobres nem ricos: as duas coisas são demasiado molestas. Quem ainda quer governar? Quem ainda obedecer? Ambas as coisas são demasiado molestas.[…]  Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo. Todos são iguais: o que pensa de outro modo vai por seu pé para o manicômio. […] Não faltam um pouco de prazer para o dia e um pouco de prazer para a noite. Mas, respeita-se a saúde. […] Descobrimos a felicidade […].”[1]

Inicialmente, tal citação nos sugere tratar-se de um tempo de paz e de conforto, realização para quem quer uma vida tranquila e prazerosa. E o autor realmente pretende que assim se perceba. Então, o que há nessa figura de “desprezível”? O que pode significar tal provocação?

Talvez, numa leitura mais cuidadosa do  texto de Nietzsche, possamos perceber, na voz de seu profeta Zaratustra, que esse personagem que “inventa a felicidade” pode estar, na verdade, criando mais que isso.[2]  Melhor dizendo, “abandonar as regiões onde é duro viver” pode significar o mesmo que fugir das dificuldades. É claro que um dos principais objetivos da ciência moderna é o domínio das forças da natureza com vistas a uma vida de maior conforto. É óbvio, também, que a cura para as mais variadas enfermidades, por exemplo, é uma das mais importantes conquistas do século XX. Porém, será que uma vida realmente fácil e feliz não constitua uma falácia na qual devemos acreditar para podermos pertencer a este nosso tempo? Não será uma regra disfarçada? Qual de nossos jovens – e, mesmo, muitos de nós – conseguiria, hoje, apresentar-se no Facebook sem ostentar felicidade e realização plenas? E o que seria essa realização? Marcas, objetos, festas, passeios que todos fazem, amigos populares que nos abraçam e pousam para as fotos, folga, sorrisos? Entretenimentos que “não nos cansem”? Estranho, não? Isso existe? Vejamos que o trecho citado também nos apresenta a ideia de “nenhum pastor e um só rebanho”, onde “todos querem o mesmo” e “todos são iguais”, como realizações desse último homem. E ai daqueles que pensarem diferente. Ninguém precisará mandá-los para o manicômio, pois sentirão que é o único lugar onde podem caber.

Quem seriam os “loucos” de hoje, que vivem “tropeçando com pedras e homens”? Quem desejaria, de fato, “governar”? Palavras fortes, essas, não? E o que podem nos querer dizer? Podemos pensar, sem exagerar muito, que trata-se de uma crítica a esse hábito (que podemos ter) de passividade perante a vida e o mundo? Afinal, se tudo está pronto, para que esquentar a cabeça? Mas, e se não for bem assim? Algo me diz que o homem que filosofava a marteladas está nos falando de algo até bem mais complicado. Aliás, quem se interessar por um mergulho na mente de Nietzsche talvez sinta que está nos alertando sobre o quanto de verdadeira realização e beleza estaremos perdendo com essa postura de “últimos homens”. Felizes e dóceis criaturas. Pode ser que eu esteja enganado, mas nossa comodidade e nosso desinteresse pelo profundo não nos estão levando a dias melhores. A realidade pode ser outra. (Ainda bem que inventaram o “Face”.)

E aí, talvez, possa residir uma boa parte do problema de “nossos alunos apáticos e desinteressados”. Sim, pois aprender requer busca, ruptura com o que velho, ousadia para questionar, disciplina (que, para muitos, é como, não tropeçar, mas viver em pedras), olhar apaixonado que sugira, por exemplo, que  a Relatividade possa ser quase tão interessante quanto a nova capa para I phone. E aqui vem o pior. Não são somente eles!

Nós – professores, pais e coordenadores – podemos também estar vivendo – e, portanto, ensinando – essa vida de “últimos homens”. Não? Será, mesmo? Afinal, como já disse, tal prática pode ser algo inconsciente. Talvez, esse mundo aconchegante em que podemos estar vivendo, e para o qual preparamos as novas gerações, não exista de fato. Talvez, quem sabe, devamos pensar que exista, mas… E, se assim for, nas aulas (com nossos alunos) e em casa (com nossos filhos) podemos  estar impedindo que a corda esticada não alcance o  além do homem. Esticar-se-á até se romper. E o resto será saudade. Dos primeiros homens.

 [1] Nietzsche, F. Assim falava Zaratustra, “Prólogo”.

[2] Nietzsche talvez seja o anti-filósofo, ou aquele intelectual que se recusa a escrever burocraticamente, mas utiliza a sutileza da poesia ou a contundência da ironia para nos fazer, não só entender, mas também sentir acerca de coisas que nos perpassam e nos afetam latentemente a vida.

 
joao-luiz-muzinatti
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações[email protected] ; www.abcdislexia.com.br 

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