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Guia para Gestores de Escolas

Entre o "não mais" e o "ainda não"

No último dia 24 de fevereiro, algumas dezenas de meninas de 13 a 17 anos – e também alguns meninos – fizeram uma manifestação, no intervalo das aulas, contra a proibição do uso de shorts nas dependências da escola. A escola é uma das mais tradicionais da cidade de Porto Alegre. Uma escola privada, cuja matrícula, feita pelos pais, era condicionada a assinatura de um termo de compromisso em relação às regras da escola. Uma dessas regras dispõe sobre o uso de “roupas adequadas” ao ambiente escolar. A direção entende que shorts femininos não se enquadram no termo “adequado”. As meninas veem nisso uma expressão de machismo e lançaram um manifesto na internet chamado “vai ter shortinho sim”. E estabeleceu-se a discussão.

É fato que vivemos em uma sociedade machista e misógina. É fato que a violência contra a mulher – real e simbólica – é abjeta e precisa ser combatida. A pergunta é : as normas estabelecidas por uma escola, assim como as normas vigentes para as repartições públicas ou museus, ou restaurantes, ou igrejas, ou quaisquer outros lugares nos quais se queira preservar uma certa liturgia de respeito e adequação, necessariamente implicam em reprimir o corpo da mulher e seu direito de se vestir “como achar melhor”? E, o que me parece mais importante: como se trata de uma escola responsável pela educação de meninos e meninas de 13 a 17 anos, não é razoável que esta escola assuma alguns discursos de adequação quanto ao modo de vestir e de agir dentro do espaço escolar dessas menores de idade?

Lendo o manifesto das estudantes, cujo título é um imperativo, uma espécie de ameaça – “Vai ter shortinho sim” – , atenta-se, na mesma frase, com o seguinte paradoxo: exigimos que deixe no passado a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros; exigimos que, em vez de ditar o que as meninas podem vestir, ditem o respeito. Perceberam? Tá tudo certo? Sem dúvida, lutemos contra a mentalidade machista! Sem dúvida, mulheres são vítimas e não são responsáveis pelas agressões que sofrem! Evidente! Agora, os mais velhos – pais, professores, autoridades – não devem mais recomendar o que as meninas podem ou não vestir? Pois, diante da lei, o que as crianças fizerem não é  responsabilidade dos adultos?

Hannah Arendt, em uma resenha memorável, fala sobre a quebra da continuidade da tradição histórica e, citando o filósofo Hume, afirma que  a civilização humana como um todo subsiste porque “uma geração não abandona de vez o palco e outra triunfa, como acontece com as larvas e borboletas”. No entanto, a pensadora alemã lembra que o declínio do velho e o nascimento do novo não são necessariamente ininterruptos e surge um “espaço vazio”, uma espécie de terra de ninguém histórica, que só pode ser descrita em termos de “não mais e ainda não”. A reflexão sobre a “revolta do shortinho” pode ser assim encaminhada: por um lado, a saudável reivindicação por liberdade e reconhecimento; por outro, a busca pela manutenção de regras que traduzem valores de respeito por espaços públicos e pelo recato, pela discrição, pela proteção à exposição pública de crianças, de meninas, enquanto não há maturidade para escolher e sustentar suas escolhas.  Não me parece que se possa condenar, demonizar, descartar tanto uma posição quanto a outra. O que é necessário é compreender.

*Daniel Medeiros é Doutor em Educação Histórica pela UFPR e professor do Curso Positivo.

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