O que ensinar na educação infantil?
Matéria publicada na edição 110 | Agosto 2015- ver na edição online
Quando se examina os conteúdos curriculares desenvolvido no Brasil, tanto em Escolas Públicas quanto nas Escolas Particulares nos cursos de Ensino Fundamental e Médio não é difícil descobrir-se uma relativa uniformidade. Um simples exame destes conteúdos presentes nos livros didáticos e nas diferentes publicações dos Sistemas de Ensino mais utilizados confirma essa assertiva. Varia e varia bastante “como” é promovido esse ensino, desde o tradicional sistema discursivo do professor, o aluno individualizado, a lousa e seu caderno, até estratégias que envolvem recursos eletrônicos sofisticados e textos impressos pelo próprio aluno, não muda, entretanto os conteúdos das disciplinas curriculares, inclusive pela própria imposição de afunilamento nas provas do ENEM ou outros chamados grandes vestibulares. Enfim, o que o aluno necessita saber ao concluir seu ciclo estudantil pré-acadêmico constitui uniformidade nacional.
Não é, entretanto, o que se observa quando se examina os conteúdos habitualmente trabalhados na Educação Infantil. Se acreditarmos prioridade insofismável a alfabetização e letramento pleno, assim como uma incursão compreensiva através das operações aritméticas básicas, existem divagações sobre o restante dos conteúdos a se trabalhar. Dependendo da natureza da instituição ou dos hábitos culturais de cada ponto do país, não se percebe a preocupação sobre os conteúdos essenciais que qualquer criança necessita levar para iniciar o Ensino Fundamental. Infelizmente em muitos lugares ainda prevalece à concepção da criança como um “pequeno adulto” ou algo cujo volume de saberes com que deve chegar ao Ensino Fundamental pode ser um punhado de informações desconectadas e irrelevantes, pois que somente a partir desse nível e como professores especialistas irão entrar com seriedade no mundo do saber.
É evidente que existem exceções, mas são estas de tal forma incomuns, que parece impossível se estabelecer um padrão de como está ocupada à mente de uma criança ao terminar a sua Educação Infantil e, pior ainda, se este padrão em condições excepcionais existe para alguns, serão os mesmos atropelados pelas normas do que efetivamente se acredita ser essencial a todos. Mas, não é isso que se nota quando se compara a Educação Infantil no Brasil como é a mesma preparada em inúmeros países que navegam por patamares educacionais que não ousamos comparar.
Nesses países, há tempos, se superou a ideia do “adulto pequeno” e já não mais se encara a educação infantil uma etapa irrelevante em termos de aprendizagens de conteúdos das disciplinas curriculares. Em face desta situação, nas oportunidades em que somos convidados a falar sobre os “conteúdos” a serem ministrados na Educação Infantil, após a conquista do letramento e do domínio das operações aritméticas básicas, costumamos sugerir que estes devem se organizar em torno de cinco pilares que consideramos essenciais e que jamais deixam de existir em países em que a formação da criança é encarada com respeito e prioridade.
Enumeramos abaixo esses cinco pilares, destacando que não cabe qualquer hierarquia entre eles. Portanto:
- A DESCOBERTA DO MUNDO DA CIÊNCIA ATRAVÉS DA OBSERVAÇÃO REFLEXIVA DO ENTORNO.
Não é possível se estabelecer uma idade prescrita para começar a se aprender ciência. O saber científico emoldura de tal forma a nossa vida que desde que a criança aprende a perguntar é essencial que sua curiosidade se volte para o “por que” das coisas que observa. Por que o céu é azul? Por a rouca seca mais depressa no varal? Porque os rios correm para o mar e não ao contrário? Porque respiramos? O que significa dormir? Porque são verdes as folhas das plantas?
Enfim, existe um indevassável universo de curiosidade que emerge da observação infantil e que cabe aos pais e, sobretudo, a escola canalizar. Menos importante que o volume de respostas que cada criança deve levar para o Ensino Fundamental, é importante que prevaleça algo como um verdadeiro “culto a sua curiosidade científica” e sua perspicácia em buscar respostas. O educador infantil nesse caso não seria a “enciclopédia humana” que assassina o gosto da descoberta, mas o fantástico propositor de problemas, o mágico desafiador dos caminhos para a busca pessoal de cada criança.
- A VIAGEM PELO DOMÍNIO MAIS AMPLO DOS SENTIDOS E DE SUA APLICABILIDADE NA VIDA PRÁTICA.
Qualquer criança explora em cada instante de seu crescimento a diversidade autônoma de seus sentidos. Viver a infância significa cheirar, degustar, observar, escutar e experimentar o tato e essa conquista produto do instinto de sobrevivência, é evidente, não requer aprendizagem específica.
Mas, por outro lado, quando se percebe a prevalência sobre a essência do viver em quem colhe aromas como um perfumista, experimenta como um degustador profissional, enxerga com olhos de um grande pintor, ouve como maestro genial e transforma a sensibilidade de seus dedos em olhos de insuperável profundidade, sabe que com extrema simplicidade e sem grande dispêndio de tempo, a criança aprende que ver é bem mais que olhar, ouvir é escutar é patamar acima de ouvir, falar é muito mais que apenas dizer. Enfim, com paciência e persistência educar os sentidos não sugere possível orientação profissional, mas uma educação para viver e para ser.
- A INCESSANTE BUSCA PELO MISTÉRIO DA PALAVRA E PELO UNIVERSO DO PENSAMENTO.
Não aprendemos a pensar como quem aprende a preparar um churrasco. Mas, raramente associamos a grandiosidade do pensamento mais sensível, ético e profundo ao domínio do vocabulário. Grupos culturais primitivos, sem língua escrita e, portanto, com reduzido vocabulário constituem pálidos modelos de culturas que, com parcos pensamentos, quase nada edificou. A criança necessita ser desafiada a cada instante em descobrir o supremo mistério da palavra, de sua fonética, da significação que lhe damos, da sútil maneira como constrói sentença e reestrutura pensamentos. Qualquer criança que cresce desafiada em se fazer um colecionador de palavras, torna-se leitor contumaz, observador arguto e carrega por toda vida as raízes infindas dessa paixão e, por isso, vive mais intensamente e, sobretudo, em cada momento de sua existência. Mas, tudo quanto se afirma sobre a grandeza da palavra, também se insinua no mistério dos números. Mais que simplesmente aprender maneja-los matematicamente é essencial que a criança aprenda a refletir sobre a magia de sua composição e a surpresa de sua relação com nos mesmos e nosso entorno.
- A DESCOBERTA DOS VALORES ÉTICOS E A BUSCA DE SUA INTROJEÇÃO ATRAVÉS DE MÉTODOS DE ENSINO REFLEXIVOS.
Pais e professores são unânimes em proclamar que não existe aprender mais essencial que a aprendizagem de valores. Constitui unanimidade entre educadores a ênfase em mostrar que organizar a existência à luz de valores e de procedimentos significa incorporar à vida a qualidade inefável da empatia, da resiliência, da acolhida, da paixão. Mas, da mesma maneira, como essa unanimidade se reafirma em toda parte emerge a contradição de que educar valores é tarefa da família e não da escola, das igrejas e não dos clubes. É esta uma ingênua simplicidade que não se percebe em nações que educam a criança para sua autonomia, sua visão sistêmica de projetos, sua relação empática com o outro e com as comunidades. Educar valores é papel essencial da escola laica e da escola religiosa, da escola pública e da escola particular, da família pobre e da família rica e se o lapso dessa ação se perde na infância, é bem possível que não se conquiste mais.
- O ESTÍMULO ÀS INTELIGÊNCIAS E SUA APLICAÇÃO NO COTIDIANO
Acreditamos que a culminância dos quatro pilares anteriores se consolida com um trabalho cuidadoso no estímulo as diferentes inteligências humanas. Não é mais concebível ignorar o que hoje se sabe sobre a mente humana, sua fenomenal plasticidade e sobre a incrível diversidade em seu poder de solucionar problemas e criar coisas. Da mesma forma como na educação da criança já há tempos se sabe que o estímulo aos músculos e ao movimento é atributo essencial a sua qualidade de vida, hoje já é possível saber que a criação de “laboratórios de inteligências” realiza para o cérebro a mesma qualidade requerida pelo corpo.
Dessa maneira, quanto se desenvolve um projeto contínuo de estimulação das inteligências se está reforçando a curiosidade na busca dos porquês científicos, a plenitude da exploração dos sentidos, a extrema sensibilidade no domínio das palavras e nas viagens do pensamento e, finalmente, a descoberta dos valores éticos como que embutido em nossa prodigiosa inteligência existencial.
Celso Antunes tem bacharelado e licenciatura em Geografia. É mestre em Ciências Humanas pela USP e é considerado um grande formador de opinião no mundo da educação. Tem mais de 280 publicações e suas obras forma traduzidas pra mais de seis países. Celso Antunes também ministra palestras em diversos países como Argentina, Uruguai, Peru, México, entre outros.