Quero ser feliz, Professor!
“O que queremos, de fato, todos nós que fazemos e vivemos a escola? (…) O que querem os alunos?”
Outro dia, no consultório, conversando com uma aluna de Ensino Médio com problemas com as ditas “Ciências Exatas”, ouvi a célebre frase, muito comum a quem vive o dia a dia da Educação em nosso mundo atual: “quero ser feliz, professor!”.
Dias antes, já ouvira algo similar, desta vez proferido por uma mãe que me procurava para tentar entender a “tumultuada relação da escola com seu filho”. “A escola não percebe” – dizia ela – “que o mais importante para mim é que meu filho seja feliz”.
Há mais de trinta anos, vivo – como profissional – no mundo da escola, mas este tipo de demanda familiar e dos alunos é coisa mais ou menos recente. De repente, estudantes e famílias decidiram que o importante é ser feliz. Mas, de que felicidade estarão falando? A que se referem quando abordam coordenadores, professores e terapeutas exigindo essa tal felicidade na educação?
Bem, não tendo alternativa – e sempre preocupado com o poder das palavras que posso lançar irresponsavelmente às pessoas que me consultam – dou uma respirada, ouço mais do que professo e saio em busca de uma luz qualquer, perdida no tempo e, muitas vezes, até esquecida por quem vive esse mundo da superprodução – ou pode ser hiperprodução, como talvez prefira o simpático Lipovetsky.
Vou atrás dos filósofos que ousaram cuidar desta “tal felicidade”. Gente como Tales, Platão e Aristóteles já pensavam nisso muito antes que a nossa escola de resultados fosse sequer imaginada. Não imaginando que poderia surgir, um dia, instituição da qual se exigisse formação, competência e sucesso temperados por doses generosas de felicidade, nossos amigos tiveram uma ideia invertida. Pensaram no que cada um de nós poderia fazer para ser feliz. E começaram, é claro, por se perguntar sobre o que é Felicidade.
O termo felicidade é latino e vem de felicitas, que pode remeter à ideia de sorte ou até prosperidade. Pouco comum entre nós – mas importante quando se viaja pela interpretação desse conceito tão complicado – é o termo eudemonia. Palavra de origem grega, vem nos apontar para outro tipo de felicidade: aquela que é construída em uma vida e pressupõe a interação satisfatória com nosso mundo e sociedade; uma busca que não se preocupe somente com momentos de satisfação, mas com o edificar de nossas vidas. Talvez seja isso, pensei. Quem sabe o cruzamento destes dois pontos de vista – vindos de duas culturas que se combinam há dois milênios para nos fazer ser o que somos – possa trazer essa luz perdida e que tanta falta faz quando queremos esclarecer as coisas. Ou, ao menos, acalmar mães e alunos que não sabem o que pensar da escola.
Tales de Mileto considerava feliz quem tem boa saúde, boa sorte e “alma bem formada”. Platão, pensador matemático mais sisudo e completamente idealista, dizia que feliz é quem possui em si justiça, bondade, beleza e temperança; infeliz, portanto, é quem traz consigo, desde sempre, a maldade. Aristóteles, discípulo meio insubordinado de Platão, pensa na felicidade como construção – sim – possível àquele que já traz em si a virtude (por exemplo, a sabedoria), mas vai mais longe. Para ele, há que se investir na construção de uma vida feliz. A alma é importante, mas as atitudes – educadas pelos bons hábitos – farão com que os indivíduos consigam constituir uma sociedade melhor, na qual o resultado seja uma vida – coletiva – de grandes realizações e prosperidade. É dele a frase: “uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma num só dia, ou um curto espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso.”
É claro que poderíamos falar muito mais sobre as transmutações que o conceito de felicidade vem sofrendo nos últimos dois mil anos. Gosto muito, particularmente, da visão de Epicuro – à qual prometo dedicar um único artigo, em breve – que vê a felicidade como o prazer na simplicidade. Porém, estes três homens da antiguidade já me servem para tentar mexer com as minhocas das cabeças dos amigos leitores.
O que queremos, de fato, todos nós que fazemos e vivemos a escola? Encontrar – de verdade – um tal “mundo melhor”, cujas propagandas pode estar nos mais variados catálogos, disponíveis e à nossa escolha? Fazer com que as demandas de nossas crianças, adolescentes e até universitários sejam atendidas, qual borda recheada que se pode, ou não, escolher para a pizza desta noite? Sossegar mães e pais, que vivem aflitos com o fantasma de terem de delegar o cuidado de seus filhos a uma instituição que extrapola o lar? Formar pessoas competentes que sobrevivam, ou até se destaquem, na selva contemporânea que habitamos? Incluir? Prover a educação para a ética, como já sinalizava o velho Aristóteles dois mil e trezentos anos atrás? “Encantar” para o conhecimento? Fazer tudo isto ao mesmo tempo?
O que querem os alunos – e seus porta-vozes nas reuniões de orientação educacional – quando exigem qualidade e felicidade no cotidiano escolar, quase nos moldes das atrações pirotécnicas e mirabolantes dos parques da Disney? Será que professores, agora, têm de ser também astros, e as aulas, shows, para que sintam prazer e felicidade – esta, como sinalizam os padrões atuais, uma interminável sucessão de satisfação e divertimento? O que pensam, afinal, os educandos sobre a escola? Por que e para quê ela existe?
Infelizmente, ainda não consegui criar um rol de argumentos que convençam, expliquem ou apenas minimizem a insegurança de quem me procura querendo tirar prazer dos momentos de investigação, disciplina, seriedade e compromisso que o ensino e a aprendizagem me parecem exigir. E tampouco consigo criar felicidade nos momentos em que o conhecimento vem à pauta. Só o que trago são dúvidas e mais questionamentos. Sinceramente, gostaria que fosse diferente.
E vou ainda mais longe – ou, quem sabe, recuo ainda um pouco mais. Será que vale a pena pararmos para pensar nestas questões? Ou será que o certo não seria deixarmos de procurar porquês e seguirmos a roda da vida? Afinal, dirão alguns, a escola está no mundo que temos eexiste para o mundo que temos. Já ouvi de um educador que “a escola, hoje, é outra”. Então, talvez não estejamos complicando muito as coisas e o melhor seja mesmo relaxar e educar como se pode – ou como se pede? Talvez o educador também mereça ser feliz . . .
E com essas e outras, vou seguindo meu caminho, procurando e esquentando sempre a cabeça – fazer o quê? . . . sou assim mesmo e não tem jeito.
Longe de me conformar, vivo me perguntando o que responder a alunos e mães que querem, acima de tudo, felicidade? E tem outra coisa: no fundo, no fundo, sinto que a afirmação “quero ser feliz” pode estar querendo dizer muito mais. Coisas do tipo: onde se encaixa a escola na dinâmica do prazer e do show contemporâneos; por que só aqui, eu tenho de sofrer? Ou, quem sabe, quando vão inventar a maquininha que transmite conhecimentos sem dor ou perda de tempo?
Por Prof. João Luiz Muzinatti*
Prof. João Luiz Muzinatti é Mestre em História da Ciência. Engenheiro, é também professor de Matemática, Filosofia e Ciências em nível de graduação, pós-graduação, e Ensino Fundamental e Médio.
Atua ainda como diretor do ABC Dislexia (com atendimento a alunos, consultoria, cursos e palestras em Educação), além de consultor do MEC (Ministério da Educação) em Filosofia para a TV Escola – programas “Acervo” e “Sala de Professor”. Foi diretor do Colégio Santa Maria, em São Paulo; coordenador pedagógico do Colégio Franciscano Pio XII (também em SP); e diretor do Espaço Ágora – Terapêutico e Educacional.
Trabalhou como engenheiro daFlender Latin American – consultor no Chile, e escreveu e lançou o livro de poesias “Inventário de mim” (Ed. Scortecci) .
Mais informações: [email protected] ; www.abcdislexia.com.br